dança da chuva, poema de Andri Carvão

Fazer uma fogueira com ossos
humanos. Assar um cão na brasa.
Comer a brasa regada a vinho.
Vinho servido numa taça feita
de um crânio canino. Vinho tinto
tipo A. Quando o fogo cessar,
apagar as brasas num jorro
de mijo comunitário. Pintar
o rosto com carvão. Encher
os bolsos de carvão. Vomitar
no rio e depois bebê-lo até o fim
para tirar o gosto ruim da boca.
Chorar e sorrir. Subir na árvore
mais alta, no alto da copa, no galho
mais fino a suportar o peso do corpo
humano. Procurar deitar o mais
confortável possível. Fechar os olhos
e relaxar… Soltar o corpo… Abster-se,
abstrair-se e esvair-se até tombar
no vazio da chama primordial.

Um raio abre uma cratera na montanha.
A montanha expele e jorra seu magma,
o sangue sagrado da terra. A lava
escorre e mergulha na água do mar,
petrificando. As rochas como icebergs,
mais da metade dentro d’água,
são açoitadas pela arrebentação,
sob o voo e o canto das gaivotas.
Nas rochas, nova morada da fauna
e da flora a beira-mar, pássaros se aninham
em suas frestas no alto e mais abaixo,
caranguejos, aranhas e siris fazem
a festa. Um homem, eu, você, nós,
ou quem quer que seja, se atira
da árvore de cabeça entre os rochedos.
Ele desaparece por alguns instantes,
tragado pelas águas do mar bravio.
Mas, de repente, emerge e transpõe
a barreira das ondas a braçadas
até alcançar a base da rocha mais
próxima. Alça-se das águas escalando
o paredão, alvejado pelos respingos
da arrebentação, como numa chuva
de verão. No caminho pega um ovo
de um ninho e o esconde no bolso
da camisa. Em seguida agarra um siri
e termina a escalada com a força
dos dedos dos pés e segurando-se
apenas com uma mão livre. Junta
alguns galhos e gravetos. Acende
uma tora na boca da cratera e faz
uma bela fogueira, onde se aquece
e assa o siri e o ovo na brasa.

Nosso herói adormece. O estrondo
de um trovão anuncia a chuva.
Uma sucessão de raios e trovões
anuncia a tempestade. O dia escurece.
A ventania aumenta a chama e a chuva
a apaga. O dilúvio cobre as rochas,
casa de pássaros e artrópodes.
As águas turbulentas invadem
a cratera em cascatas. O homem, eu,
você, o outro, adormece profundo,
boiando de braços e pernas abertos
como uma estrela do céu ou do mar,
calmo como nunca com as mãos
na nuca como num berço natural.

Andri Carvão cursou Artes Plásticas na Escola Fego Camargo em Taubaté, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na EPA — Escola Panamericana de Arte (SP). Participou do Sarau do KVA e do grupo Trem Lúdico na virada dos anos 90 para 2000. Graduando em Letras pela Universidade de São Paulo com habilitação em espanhol, o autor possui publicações nas revistas online Labirinto Literário, Libertinagem, Gueto, Aluvião, Originais Reprovados, foi colunista do site Educa2 e participou das antologias: Gengibre — Diálogos para o coração das Putas e dos Homens Mortos, Embaçadíssima — Antologia Tirada de uma Notícia de Jornal (ambas pela Appaloosa Books) e 7 Dias Cortando as Pontas dos Dedos — um manifesto contra o fascismo (org. por Rojefferson Moraes. Publicou Polifemo em Lilipute e outros contos (Appaloosa Books), O Poeta e a Cidade (Coleção Breves Gueto), Puizya Pop & outros Bagaços no Abismo e Marielle’s (ambos pela Scenarium). Acaba de lançar Um Sol Para Cada Montanha — poemas de formação (Chiado Books).