carta de novembro, de Mariana Ianelli

Não leve a mal o silêncio, meu amigo. São horas de equilíbrio instável até chegar a uma trilha arborizada, depois mais algumas horas até poder pensar uma palavra. E assim vão as semanas. Passando um tempo imenso sem registro. Um tempo imenso livre de ser registrado. Nenhuma peripécia aparente. Nada de prazeres transatlânticos. É só um café depois do almoço. Uma hora a mais de sono de vez em quando. Um banho morno. Um chá à noite. Prazeres inversamente proporcionais a seu nível de extravagância, mas como fossem graças, pequenas graças. Uma cópula aérea de borboletas. Seis hibiscos abertos mais três brotos. Um reflexo de fogo no vidro do apartamento em frente. Coisa pouca, para cuidar que os ecos do mundo não quebrem uma alma através dessas janelas para os muitos cantos da Terra com seus meninos cobertos de cinzas, como tatus enfiados em abrigos, retirados de escombros, meninos salvos de bombardeios, meninos em botes apinhados de gente em pânico, bichos enlouquecendo em cativeiros, essas imagens do dia que entram por nossos olhos e depositam seus ovos aqui dentro. Então o silêncio. Então um tempo imenso sem registro, mas de íntimas batalhas. Para colher do mundo um mundo que mereça uma criança. Como aquela mulher que caminhava debaixo de chuva, com bolhas nos pés, em tempos de guerra, procurando um ramo de rosas para trazer para casa. Como o passarinho que vai preparando seu ninho contra o vento com centenas de minúsculos gravetos: ainda cuidar de fazer dentro de um dia uma cama de pequenas graças. Não são as palavras que custam a ganhar forma, custa é colocar alento nelas. Não leve a mal, meu amigo. Uma palavra demora um milagre a nascer.

| crônica do livro Entre imagens para guardar (Ed. ardotempo, 2017). |

Mariana Ianelli, nascida em São Paulo em 1979, estreou na literatura em 1999. É autora de oito livros de poesia, entre eles Fazer silêncio (2005), O amor e depois (2012) e Tempo de voltar (2016). Recebeu o prêmio Fundação Bunge de Literatura (antigo Moinho Santista) na categoria Juventude, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e foi quatro vezes finalista do Jabuti. Tem dois livros de crônicas, Breves anotações sobre um tigre (2013) e Entre imagens para guardar (2017). Escreve quinzenalmente aos sábados na revista digital de crônicas Rubem. Em 2018 estreou na literatura infantil com o livro Bichos da noite.