parceiros, de Mauro Paz

Faz uma semana que não saio do quarto. Abro a porta três vezes ao dia para receber café da manhã, almoço e janta. Ontem abri a porta no meio da tarde. Passei o braço pelo vão e deixei com a camareira as roupas do corpo mais uma nota de cinquenta reais. Precisava das roupas lavadas e secas o quanto antes. A praia estava vazia, disse a camareira. Sugeriu que eu saísse para um mergulho. Entreguei outra nota de cinquenta. Pedi um pacote de cem folhas pautadas e três canetas azuis. Por um bom pedaço da noite, olhei o teto até decidir o que escrever. Hoje comecei este relato, assim ganho tempo e o pessoal do hotel pensa que sou algum escritor excêntrico. É difícil acreditar que me tranquei aqui por medo.

Edgar sempre diz que nego feio e alto igual a mim não precisa ter medo de porra nenhuma. Besteira. Desde moleque eu sou assim. Edgar sabe disso. Na oitava série, Cesão, um marmanjo repetente, cismou comigo. Disse que eu abri o bico para o diretor. Como se precisasse. Todos os professores sentiam o cheiro de maconha na volta do intervalo. Sou cagado. Fiquei três dias sem aparecer na escola. Ficaria mais. Voltei porque Edgar quebrou o braço de Cesão num jogo de futebol.

É perda de tempo me comparar com o Edgar. Uma vez fomos ao centro de manhã para uma instalação de TV. Terminamos o serviço depois da uma hora. Estômago colado nas costelas. Entramos numa lanchonete perto da Avenida São João. Levantei o braço pra pedir: dois pratos do dia, duas cocas sem gelo, por favor. O garçom cabeçudo de queixo largo trouxe tudo empilhado na mesma bandeja. Edgar cortou um pedaço do contrafilé. Quando arrastou o arroz para fazer a mistura, um dente rolou sobre o prato. Era um pré-molar obturado com a raiz quebrada e sangue na base. Qualquer um chamaria o garçom, o gerente, xingaria o cozinheiro. Ou até denunciaria a lanchonete para a vigilância sanitária. Edgar riu. Enrolou o dente num guardanapo e comeu tudo do prato. Sou cagado. Eu nunca mais comi arroz.

Edgar é o típico baixinho que encara tudo. Quase tudo. Detesta mulher feia. Na firma tem uma baranguinha chamada Veruska, trabalha no teleantendimento. Além de pintar o cabelo de vermelho e vestir umas blusas curtas que deixam a dobra de banha pra fora, a desgraçada tem uma voz aguda de morrer. Certeza que a empresa contratou pra foder com a vida de quem liga reclamando. Edgar não tinha nada contra Veruska, até trocarem as atendentes de sala. Na mudança, o Oliveira, do almoxarifado, encontrou uma foto do Edgar na gaveta de Veruska. Piada pronta. A foto acabou colada no mural com um coração de isopor e marca de batom. Edgar só perdeu a fama de namorado da Veruska semana passada. Eu não fazia a menor ideia que tinha câmera de segurança na escadaria do estacionamento. Boa parte do pessoal deve achar que eu sumi porque o vídeo vazou. Foda-se. Pelo jeito que Veruska baixou as calças e pegou no meu pau, não dava há um ano. Essa é a grande vantagem das barangas. Como Deus não ajudou no layout, capricham no boquete. Não fosse a história do filme, eu pegaria outras vezes.

Edgar sempre diz que quando faz merda, o melhor é agir como se nada aconteceu. Aposto que hoje pela manhã Edgar desceu ao depósito da firma, separou codificadores, modens, cabos e olhou a lista de visitas. Edgar sempre deixa para o fim do dia as visitas agendadas com nomes velhos, como Elza, Lauro, Décio. Velho não entende nada de TV e internet. É só remendar a instalação para funcionar por uns dias e dar baixa no codificador novo como se o tivesse instalado. A parte mais fácil do negócio é achar quem compre um codificador desbloqueado. Garanto. A gente vendeu mais de duzentos em três anos. Quatrocentos reais cada. Você compra uma belezinha dessas e nunca mais paga mensalidade de TV a cabo. Um bom negócio para nós e para quem compra. Para a firma, um rombo. Cada vez que ia ao banco depositar dinheiro na poupança, pensava na prisão. É lance temporário, dizia Edgar. Só o tempo de juntarmos cem mil para abrir um boteco no bairro e ficar de boa. Sou cagado. Na cadeia, nego medroso igual a mim vira a mulherzinha da cela.

Garanto que ontem o Jorge, do RH, ligou lá pra casa. Minha mãe não faz ideia de onde estou. Melhor assim. Edgar conhece bem Dona Marta. Seria dois palitos para descobrir o endereço aqui do hotel. Depois que deixei o bilhete sobre a mesa de Jorge contando como somem os codificadores, o clima na firma ficou tenso. Certeza. Pior ainda para Edgar. Além de responder um milhão de perguntas, está longe de saber pra onde fugi. Espero que nunca saiba. Não importa que eu dê a metade do dinheiro. Edgar não perdoa. Conheço bem. Agora quer as duas partes. Quer a minha orelha raspada contra a laje da calçada. Quer Dona Marta envergonhada pelo filho traidor. Sou cagado, Edgar não. Duvido que algum colega de cela toque na bunda de Edgar.

Mauro Paz é escritor, publicitário e cineasta. Além da participação de diversas antologias, tem três livros publicados: Por Razões Desconhecidas (IELRS), finalista do Prêmio SESC de 2012; São Paulo — CidadExpressa (Editora Patuá); e o romance Entre Lembrar e Esquecer (Editora Patuá), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018.