memória, de Fabiane Guimarães

A cidade inteira só sabia amar o General. Por isso fincaram bandeiras a meio mastro em pano preto e choraram lágrimas gordas de besouro. Sobraram mãos para carregarem o caixão e, na cerimônia solene, deram-lhe de presente uma rua. Homenagem maior, num pedaço de sertão goiano, a placa que assinala uma esquina. Rua do General. Ninguém sabia o primeiro nome dele, nem o último, o que vinha além de tudo. Mas o amor do povo era assim anônimo.

Para confessar, no começo, eu não sabia sequer de onde vinha o apelido. Quando o General chegou já era velho, encardido e pequeno, com uma espessa cabeleira branca e a perna meio manca, troncha; não fazia, aos meus olhos, o tipo militar. Além de tudo tinha um sorriso fácil, um gosto pela cachaça de banana ao meio-dia, pelo futebol de domingo. Um homem simples. Forasteiro, mas simples. Talvez inspirasse ali algum respeito, e era isso. Um general de bons modos.

A notícia era que tinha terras, mas não cuidava delas, preferia recostar-se ali tranquilo, sempre no corredor das calçadas onde se erguiam as mesas de bar, com um baralho no bolso à espera de parceiro. Fazia piada com a fábrica de leite e queijo, dizia que amava o cheiro, que se lembrava das tetas da mãe; o cheiro que empesteava tudo, azedo e cremoso. Nesta época eu não achava nada disso divertido, mas ria para o General me pagar outra cerveja. A fábrica de leite era dura, e meu pai trabalhava dois turnos para garantir-nos a comida. Eu tinha cinco irmãos.

Apesar de tudo, do falatório incessante e vazio de graça, gostava da companhia do General. Não achava, como o resto, que fosse um deus. Não me alimentava de seu dinheiro, não mais do que alguns trocados. Gostava de ouvi-lo suspirar, olhando para o nada, até escurecerem os olhos. Cedo demais compreendi que o General era um homem que todo mundo amava sem entender.

Ele devia ter lá seus setenta anos quando se casou com a Maria das Graças e assumiu, de papel passado e tudo, a Manoela. Pegou menina, viu crescer, era assim como pai mesmo. Eu, dezoito anos e cheio de desejos imperturbáveis, de namorico sincero e cristão, fui pedir a mão da Manoela em casamento. Estava suando frio. O General me via como um garoto leiteiro de bigode ralo, filho de operário, parceiro de buraco ocasional, companhia de boteco. Não me via como genro. E não me viu. Nem me ouviu dizendo que pretendia estudar, que Manoela seria rainha.

Segurou meu braço com força e disse, com a voz tranquila e morna, que podia me matar ali mesmo, depois dar de comer aos cachorros. Acreditei, porque houve medo.

Rompi com Manoela, gostaria de dizer que não por esse motivo. As notícias de seu pai me chegavam meio tortas, eu ressabiado estranhava o sentimento: tratava-se de um homem muito bom, que mandava construir igrejas e comprava cadeiras de rodas para os velhinhos do asilo, um amigo querido, o que pensava eu de sua conduta protetora e zelosa? Fiz as malas para estudar em Brasília, meu próprio pai não ajudou em nada, mas disse que sentia orgulho do seu filho que não iria cheirar a leite.

“Sabe, Augusto, qual é a maior esperteza do diabo?”, o General me perguntou uma vez enquanto jogávamos buraco, eu ainda tinha treze anos, ainda não namorava meninas proibidas. “O diabo, mesmo, nunca faz nada”.

Disse isso com um tom sério, amargo, depois armou um sorriso para disfarçar. Não me lembro do assunto em pauta. Talvez algo sobre as contendas religiosas que ele travava. Talvez sobre o meu nariz quebrado em uma briga de escola. O General era mais pai do que o meu pai que cheirava a leite. Até não ser.

Manoela me ligou duas vezes em sete anos. Na primeira vez, não atendi. Não queria alimentar nela falsas esperanças. Na segunda, trabalhando como escrivão em uma delegacia abarrotada, atendi por curiosidade. Ela estava chorando. Quase não entendi as palavras que chegavam atropeladas em um engulho só: meajudamatarammeupai.

Aos oitenta e cinco anos, enquanto cruzava pacificamente a pracinha principal, com uma sacola de compras nas mãos, o General tinha levado sete tiros. Cinco no peito, o resto na cabeça. O caixão estaria irremediavelmente fechado. Eu disse a Manoela que iria para o enterro, sim, com certeza, dali a observar o festival de lágrimas de besouro, de bandeiras a meio mastro, de emplacamento de esquinas. O delegado local, conhecido meu, me colocou a par dos suspeitos: nenhum.

Uma execução completamente limpa.

Por dias, Maria das Graças e Manoela, recebendo-me com biscoitos e cafezinho, achavam que eu prestava considerações de luto com a posição de um especialista forense. E que, se pedia acesso aos documentos pessoais e rastros do General, eu o fazia para descobrir o culpado de sua morte, para fazer-lhes justiça ao resolver o grande mistério.

Foi só assim que eu descobri que ele se chamava Paulo Mendes de Fonseca Aguiar, formado na Academia Militar das Agulhas Negras do Rio de Janeiro, que tinha uma ex-esposa e três filhas na mesma cidade em questão; e só assim descobri que ele tinha sido um proeminente carcereiro com especialidade em correntes elétricas e banhos gelados; que adorava arrancar unhas e seu passatempo preferido era fazer os outros engolirem lâminas de barbear até cagarem o próprio intestino em retalhos.

Nem Manoela, nem Maria das Graças, ninguém deu muita atenção aos fatos recortados de jornais antigos que narravam o sumiço do figurão, dado como muito conveniente e depois disperso na atmosfera do tempo. Depois, me acusaram de não respeitar a história alheia e de acobertar assassinos que dão exatos sete tiros em homens de bem. A placa ficou, o amor restou sereno, indelével, pela alma do injustiçado. De minha parte, só posso compreender um pensamento, uma memória de leite despontando no céu da boca: o diabo, mesmo, não faz nada, nunca fez nada.

É que fazem por ele.

Fabiane Guimarães é jornalista e escritora nascida no interior de Goiás, e atualmente mora em Brasília. Aguarda a publicação de seu primeiro livro, Pequenas esposas.