É surpreendente ver o movimento dos pombos no terraço do vizinho depois do meio-dia. Posso afirmar com categoria que em nenhum outro lugar do mundo eles apresentam comportamento tão estranho como aqui. Lá na Alexanderplatz, por exemplo, é possível vê-los apreciando o jazz tocado pelos cubanos por volta das 5 horas da tarde. Os pombos tem bom gosto. Também pode-se dizer sem errar que em Nova York eles lançam de suas patas uma linha fibrosa para pularem de prédio em prédio e passearem pela cidade. Já na Plaza de Armas, os pombos são mais sisudos, mesmo assim não perdem a oportunidade de oferecer um manto de alpaca para quem ali estiver passando. São seres insistentes e eu não saberia dizer quantas vezes entrei na primeira loja para me livrar deles. Pombos são esquisitos, mas como em São Paulo, nunca vi. No começo pareciam normais, eu parava na sacada do apartamento com meu café na mão para fumar um cigarro e confesso que nada percebia. Seis pombos no terraço do vizinho brincavam como seis pombos brincam. A rua tranquila, transeuntes, vendedores ambulantes, garotos de bicicleta. Os fios de energia elétrica soltando barulho. Nada para chamar atenção, e logo voltava ao trabalho, porque tenho muito serviço para entregar. Os pombos sempre estavam por ali, no terraço do vizinho, do outro lado da rua, e aos poucos observei que número aumentava, sete oito, um dia contei dez. Eles se bicavam, faziam festa, abriam as asas, namoravam, a fêmea subia no macho, até aí tudo bem, pombos são assim mesmo. Um dia, logo depois do almoço, notei que os pombos estavam quietos, não se tocavam mais, nem brincavam. Apáticos, me obrigaram a observá-los de outra forma e pela primeira vez os vi de verdade. Os pombos paravam tempos na mesmo posição e, às vezes mexiam a cabeça de um lado para outro como desconfiados que alguém estivesse à espreita. Um deles me notara ali na sacada, e eu, para disfarçar, dei meia volta e entrei no meu apartamento. Descartei o cigarro enquanto deixei a xícara de café ao lado do computador. Pé ante pé, devagar, retornei a sacada com as costas inclinadas tentado evitar que me vissem. Pus meu corpo atrás de uma floreira de uma samambaia gigante que me cobria a cabeça e o tronco, e comecei a espiar aqueles pombos. Sim, os pombos de São Paulo não eram normais. Estranho o que faziam, esperavam o dono do flat sair para almoçar e invadirem a sala. Eles passavam pela janela do terraço e tomavam conta do espaço, mas, como era de se esperar, não empoleiravam no sofá, nem mesmo subiam na mesa da cozinha para catar algumas migalhas de pão. Os pombos estavam mesmo interessados no computador do vizinho. Nunca vi isso, pombos viciados em internet. Atacavam o teclado com seus dedos finos e unhas em garras, e sem exageros, posso contar que eles voltavam suas cabeças para a imensa tela e nem se mexiam por sei lá quanto tempo. Pareciam abduzidos pelo que viam, e eu não conseguia imaginar o que aquele bando de pombos fazia ali. Quem sabe um código de pombos, com o mundo globalizado, os pombos também arranjaram um novo jeito de se comunicarem com pombos distantes.
O mais extraordinário, que me deixava perplexa, era o que se sucedia depois. É impressionante a organização desses pombos. Fico pensando o que seria da política desse país se eles participassem de alguma organização. Um único pombo esperava no muro da frente, observando a rua e a volto do dono do apartamento. Quando o dono embicava na esquina, o pombo vigia girava a cabeça em direção aos outros pombos dentro da sala e soltava um sinal. Não conseguia escutar da minha sacada, mas todos os pombos largavam o computador do rapaz e voltavam para o terraço. Permaneciam ali por alguns minutos e depois voavam para longe. Eu retomava o trabalho, mas não com a mesma concentração de antes. Pegava-me por vezes tentando decifrar o verdadeiro motivo daqueles pombos se comportarem assim. Será que há nos pombos o desejo e a ansiedade e eles também mergulham no eterno conflito de Narciso? Não, claro que não, pombos vivem em comunidade e não possuem memória. Ademais, poderiam eles usar as vidraças das casas, os espelhos dos carros, as vitrines das lojas. Em definitivo, não é uma questão de autoadmiração. Pesquisei no Google o comportamento dos pombos. Numa página de Ornitologia, descobri que os principais predadores dos pombos são os gambás, os guaxinins e as corujas e seus ovos podem ser capturados por gaivotas e corvos. Porém, nas cidades já não há tantos predadores como na natureza, afinal os tempos mudaram, e os pombos por que também não mudariam?
No outro dia, lá estava eu, vestido de samambaia, com os joelhos dobrados, observando os pombos. Comecei a fumar com menos frequência, não que desejasse largar o cigarro, mas por que queria dedicar mais tempo as minhas observações. Não participava mais das redes sociais, larguei os grupos de discussão política, nunca mais vi as páginas de comida vegana. Tive inclusive um problema com meu chefe, atrasei uma matéria importante sobre as recentes transações do governo federal. Ele ficou furioso. Dane-se. Seja como for, observar o comportamento dos pombos estava dando um sentido para a solitária vida em São Paulo. E lá estavam eles no terraço do vizinho, agora dava para contar uns quinze dezessete. Da mesma forma, esperavam o dono do flat sair para se apossarem do computador. Ali, em frente à tela, ficavam como as pessoas ficam ao celular. Os pombos eram compenetrados, em nada poderíamos criticá-los. Cumpriam a missão tal qual se designavam. Admirável.
Passei os três meses que morei nesse apartamento anotando e organizando minhas observações sobre os pombos do terraço do vizinho. Foi com tristeza e desprezo que recebi a notícia de mudança de cidade. O jornal me queria em Brasília para cobrir de perto as medidas do novo governo federal. Tive que encerrar o meu trabalho com os pombos, justo agora que estava perto de um diagnóstico. No último dia, antes de tomar o avião, fiz minha derradeira observação. Eles eram muitos, muitos, já passavam o número de mil. Aquilo se tornava cada vez mais curioso e eu tendo que mudar por causa do meu emprego.
Graziela Brum é de Arroio Grande, Rio Grande do Sul. Escritora, coordena o projeto literário Senhoras Obscenas, venceu o concurso ProAc categoria romance com o texto Fumaça. Atualmente escreve o romance Jenipará.