o canto da sirene, de Henrique Balbi

O menino sai correndo: perfurado pelo som de uma sirene, em alto volume. Para na janela. As mãos espalmadas contra o vidro, como se o impedisse de seguir a ambulância pela rua. Ele a acompanha com o olhar e dá um suspiro. Volta à mudez habitual.

Na casa de dona Cassandra, podiam se passar dias sem que se ouvisse a voz do menino. Ela já estava acostumada, sabia que o menino se comunicava e dizia muita coisa mesmo quieto. Mas para isso era preciso ficar atenta, muito mais que com uma criança comum, agitada, frenética, e esse era o problema: o dobro da atenção significava o triplo do esforço e o quádruplo do cansaço. Ainda mais para uma senhora de idade.

Não fosse por isso, ela não teria problema algum em passar os dias com o menino. Era um favor imenso que fazia à filha, e a si mesma: desdobrar-se em mãe de novo.

Dona Cassandra era mesmo a avó favorita, mas havia alguns anos que era, também, a única. Ela já ajudava bastante desde o diagnóstico do menino, e ainda mais depois do acidente do pai e da longa internação.

Meses horríveis, em que pisavam no estilhaço dos dias. A filha de dona Cassandra era quem mais havia se desgastado no processo, não menos pela solidão. Uma vez disse para a mãe que se sentia um dique, quase não suportando os golpes da maré. Cada vez que pisava no hospital, cada vez que era envolvida pelo ar encanado, frio e úmido dos corredores, cada vez que entrava num quarto e adormecia, mal equilibrada, numa cadeira, o som da TV aberta preenchendo o fundo dos sonhos, era mais um golpe da maré. O tom pretensamente calmo dos médicos, a simpatia compadecida das enfermeiras, os cochichos tensos — outro golpe. Então ela se calava, esperando.

Dona Cassandra estendia a mão para segurar a da filha. Aquele toque, mãos envolvendo-se, o calor, as rugas ao redor dos dedos e no dorso, um entrelaçar de mães, parecia o golpe final. Estouro da barragem.

Antes, a mãe costumava deixar lá o menino, à espera, apenas quando viajava. Dona Cassandra assumia o papel integralmente, levando-o à escola, servindo-lhe as refeições, ajudando na lição. Tentava induzi-lo a comentar alguma coisa do seu dia, das suas brincadeiras, das suas professoras. Sabia que era em vão, se o objetivo fosse ouvi-lo falar. Não importava: era um modo de manter aberto o canal, de sinalizar que, caso necessário, ouviria com gosto e paciência.

Dessa vez, porém, nem isso o menino parecia captar — as mãos espalmadas contra o vidro da janela do carro, vistas por dona Cassandra pelo retrovisor.

Dona Cassandra não estava na casa no dia, mas ouvir a filha dava a impressão de que tinha testemunhado tudo.

O menino na sala, quieto. Montava uma torre de Lego.

A mãe no mezanino, concentrada. Lia um encadernado, primeiro de uma pilha.

O pai no banheiro, quieto também. No banho.

Escutou-se um barulho, uma pancada — depois a monotonia da corrente do chuveiro.

A mãe e o menino se assustaram, mas só ela correu até lá. Abriu a porta, logo a fechou e pegou o celular. Entrou no banheiro de novo, deixando-o entreaberto, para poder escutar caso o menino precisasse de algo.

Foi a primeira vez que o menino ouviu aquilo ao vivo: parecia uma série de gritos de alguém que não se cansava. O barulho subia muito e depois descia, sempre muito alto. Começava a variar, a repetir-se mais rápido, e acelerava. Fazia tudo de novo.

A mãe apareceu na sala, foi até a entrada da casa. O barulho continuava ao fundo, mais discreto. Dois homens entraram carregando uma espécie de cama portátil. A mãe mostrou o caminho do corredor e os três sumiram.

O menino só parou de montar a torre de Lego ao ver os homens voltarem, carregando o pai na cama portátil e seguidos pela mãe. Ela perguntava uma série de coisas que o menino não conseguia ouvir, pois estava longe. Ele a viu concordar com a cabeça. Voltou a mexer na torre de Lego, queria ver se podia construir algo da altura dele. Talvez faltassem peças. Os dedos da mãe se fecharam em torno do braço dele, mais com firmeza do que com força, e ela disse que precisava da ajuda dele. Tudo bem ele continuar montando a torre na casa da vó?

Cada sirene que passa dispara o olhar do menino, faz com que ele, ainda mudo, grude-se à janela, acompanhe-a avenida abaixo. Dali, ele vai se sentar na sala, no chão, perto da entrada: fica encarando a porta por alguns minutos, depois volta a brincar com a torre de Lego.

Dona Cassandra havia levado o menino já para a cama, e nada da filha. Voltou a se sentar na sala, com a TV ligada, mas o volume bem baixo. Sua audição já não estava boa, a depender do programa não ouviria nem se o menino, num evento muito improvável, gritasse lá do quarto. O sono batendo como maresia. Dona Cassandra colocou o controle remoto no braço da poltrona e tentou manter-se acordada. Até o programa acabar ou até receber notícias da filha, o que ocorresse por último. Apoiava uma das maçãs do rosto na mão, fechada num punho.

Não soube por qual palavra ou pensamento chegou a uma lembrança, não de um momento, mas de um hábito: sentada na mesma poltrona, em hora tão tarde quanto agora, também à espera. A filha em algum lugar, com alguém, prestes a voltar em algum momento. Podia ser que pedisse à dona Cassandra uma carona de volta para casa, podia ser que não; podia ser que precisasse de ajuda para voltar — um banho ou uma bebida quentes, podia ser que não; podia ser que pedisse à mãe que não contasse nada ao pai, podia ser que já fosse tarde demais. Dona Cassandra pensou no menino, pensou na menina que a filha fora, pensou em si mesma: uma sucessão de imagens dissolvendo-se, sem legenda, em sonho.

Um movimento involuntário do braço derrubou o controle remoto, que caiu, abrindo-se ruidosamente — pilhas para um lado, uma tampa amassada — e acordando dona Cassandra. Na TV, um leilão de joias. Nada ainda da filha. Levantou-se, foi à cozinha, tomou um copo d’água e foi ver se estava tudo bem com o menino.

Provavelmente sim: ele estava na cama, adormecido, na mesma posição em que dona Cassandra o tinha deixado. No chão, perto de uma das pontas do lençol que roçava o tapete, havia a versão reformada e menor da torre, quase igual à anterior, mas com as peças brancas e vermelhas separadas. Elas formavam uma espécie de bloco, de pequeno tijolo, incompleto. Um furgão.

O menino não está de férias, mas pelos próximos dias não vai à aula. Faltavam poucos dias para o fim de semana, de modo que dona Cassandra nem chega a se preocupar com antecedência: dos males, o menor. Logo, logo isso se resolve.

Dona Cassandra percebe que, além da ausência da mãe, o menino estranha o apartamento. É um estranhamento físico, discreto: esbarra nas mesas, nos batentes, nas quinas, às vezes anda pelos corredores, quartos e sala, e de repente para. Já percorreu tudo, tão rápido.

Dona Cassandra o acompanha mais com os olhos do que com os ouvidos. Alterna entre a TV e as andanças do neto, programa que a deixa quase apreensiva, especialmente se precisa segui-lo.

A mãe eventualmente manda mensagens, costuma ligar no fim da tarde. Dá breves boletins médicos, que envolvem dosagens, procedimentos, comentários dos doutores, e depois pede para falar com o filho. Uma ou outra noite, dorme na casa de dona Cassandra, de onde sai antes de acordar o menino e para onde às vezes demora a voltar. Quase não come, pelo menos lá no apartamento. Fala mais com a mãe que com o filho — ele segue mudo, os olhos atentos, a torre de Lego crescendo.

A cada sirene que passa na avenida, principalmente quando dona Cassandra está num sono pesado e o apartamento emudece como o mar num dia bom, o menino corre até o vidro, bate as mãos com força e assiste, concentrado, à trajetória da ambulância que percorre o asfalto gritando. Sempre no aguardo, quieto, às vezes deixando escapar um suspiro. O que nunca faz é uma pergunta, a pergunta, a única pergunta possível, a única pergunta possível e urgente, inescapável. Prefere o silêncio. Até porque a sirene já faz muito barulho e ele não ousa competir com ela.

Henrique Balbi é escritor, professor e jornalista. Nasceu em São Paulo, em 1992, mas morou em Botucatu (SP) até 2011, quando voltou à capital para estudar jornalismo na ECA-USP. Em 2014, estagiou no núcleo de revistas da Folha de S.Paulo, mas preferiu os caminhos da literatura: trabalha atualmente como assistente de ensino no Anglo Vestibulares e, em 2017, concluiu um mestrado no Instituto de Estudos Brasileiros (USP), com foco na obra de Fernando Sabino. Além disso, entre 2013 e 2017 escreveu para o site Salada de Cinema, onde publicava a “Cine-Remix”, coluna que misturava enredos, gêneros e temas de filmes.