cave canem!
Cave Canem! — avisa o mosaico,
secularmente precavido
e agora inútil.
(Cecília Meireles)
Em casa o Velho Testamento
era um livro em tinta fresca.
Temor. Nojo. Fidelidade.
Era Rebeca resguardando
para Jacó as terras de Canaã,
Tamar sob o pano toda desejo,
era a noiva a irmã, a sem defeito
pele da pele de um só Líbano
cântico de mel sob a língua
e um miserere entre os dentes.
Eram culpadas cores quentes
culpadas flores as que se abriam
aberta a noite, aberto o livro
o luto desabotoava em festa.
Era saber cantar num coro
ou não cantar absolutamente
e só com olhos manejar noções
de guerra, afago, ritmo.
Era saber que, se bem maduro,
um grito enche de gozo uma paisagem.
Portas de um sangue pesado
e dentro mínima luz: a lentidão
das coisas graves, submersas
um lago em fundo de caverna
o soalho de tábuas de cedro
fontes, escadas, jardins internos
dédalo em rastos de perfume
corredores para acordes secretos
o vinho velho em odre velho
mais sete medos no coração das trevas.
Havia o tempo de calar
havia o tempo de gemer
e havia sempre como tempo
da alma em ganas de partir,
sempre uma fome de viagem
como de uma nova inteligência,
ganas de lâmpadas alheias
do tempo de rasgar e nascer
se separar, arrancar a planta
atirar pedras, jogar fora e perder.
Era a inebriante generosidade
do rei, seu poder de perdão
seus banquetes, todos bebendo
da mesma corrente de delícias,
todos à sombra da grande asa
estátuas, colunas e astutas
mulheres com lírio na boca
a mãe, a filha, as filhas da filha
sombras de árvores ambíguas
de Dalila, de Jael, de Judite.
Lutava-se à noite sem barulho
(contra os estatutos, os extravios)
desejava-se o azul empírico,
o sétimo plano da perspectiva,
desejava-se a pérola distante,
um país outro, enquanto no deserto
ao lado rogava a mãe pelo filho,
pelo cotidiano do perpétuo holocausto
(para dois cordeiros perfeitos
dois décimos de flor de farinha).
Eram túmulos de vidas possíveis
como se fosse paz, como se fosse
fado um ferrolho na porta e dentro
povos de malícia, na noite da mãe
a noite do filho na noite da irmã,
cavalos domados pelo pai, o azul
marinho, o riso raro, a geometria
de espadas cruzadas que guardavam
o mel, a flor e o licor das romeiras
a fita vermelha, o leite, a água viva.
Jonas existia e o medo com ele.
Jonas fugia como quem só treme,
como quem não nasceu ainda.
Vinham Sofar, Baldad e Elifaz
ver o que é a dor de assombrados dias,
os peixes das fossas quando sobem
ao rosto, o trotar louco das palavras
que não encontram amigos, chagas
de Jó, demônios de um rei caído,
mas rei ainda em maldizer o fim da vida.
Era o dilúvio, e o dilúvio era bom,
um batismo eloquente, uma errata
no tempo, eram os reinos divididos
bodes, cabras, ovelhas, jumentos
e os irmãos separados
que revinham de extremos
por causa do pai, por causa dos tempos
o filho que revinha por causa da mãe,
para deitar a mãe com o pai
e os reunir na terra como fez Tobias.
Morria o rei e era como se não
morresse, era o seu nome na sarça
um fogo herdado de milênios,
o sustento da sorte, um instrumento
de corda na parede, como um prêmio
de caça, um regalo do silêncio,
e não havia fuga (nunca houve)
para um tempo isento, havia
o futuro o quanto mais distante
mais cumulado de antigamentes.
três poemas para oratórios-bala*
Quem não queria o rastro
de sangue.
Vai, vento, vira
a página do livro.
(Lélia Coelho Frota)
I.
Violento é o céu sobre um mundo sem divisas
todos os campos já visitados e sofridos
um corpo limpo de ódio, sem nojo, sem ironia:
olhai os lírios do campo, olhai os campos da sangria.
II.
As crianças como pupas em embrulhos perolados
vogando por terra em suas mínimas jangadas,
a eloquência das guerras em cúpulas bombardeadas
e mais e mais raro o pudor de secretos massacres.
III.
O ar fresco da noite no cais, a bicicleta sobre a ponte
os jogos mórbidos das fugas e dos esconderijos
o estupro, a fome, um recanto com tremoceiros roxos
e a profetisa de Rembrandt sempre curvada sobre um livro.
* Nome dado aos oratórios dos séculos XVIII e XIX, sobretudo na região de Minas Gerais, esculpidos em invólucro de bala de cartucheira ou recortados e torneados em madeira, em formato de bala, com entalhes da Sagrada Família em seu interior.
| poemas do livro Tempo de voltar (Ed. ardotempo, 2016). |
Mariana Ianelli, nascida em São Paulo em 1979, estreou na literatura em 1999. É autora de oito livros de poesia, entre eles Fazer silêncio (2005), O amor e depois (2012) e Tempo de voltar (2016). Recebeu o prêmio Fundação Bunge de Literatura (antigo Moinho Santista) na categoria Juventude, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e foi quatro vezes finalista do Jabuti. Tem dois livros de crônicas, Breves anotações sobre um tigre (2013) e Entre imagens para guardar (2017). Escreve quinzenalmente aos sábados na revista digital de crônicas Rubem. Em 2018 estreou na literatura infantil com o livro Bichos da noite.