Acordo com a boca iluminada pelas pérolas da morte
e o meu sorriso é uma sinistra floração,
impetuosa gargalhada a atravessar a eternidade.
Acordo inteira para o luto das manhãs
como um fresquíssimo cadáver,
com este corpo de mulher a rodear-se de corais
e esta cabeça batismal que se levanta
finalmente das águas.
Quando as ervas amanhecem sobre a casa
e os galos sangram sobre as fúnebres
artérias do meu sopro,
quando as larvas adoecem a roseira do outono
e a luz estala por mistério sob a língua,
ou quando range bruscamente este infecundo coração,
eu quero apenas sucumbir sobre o teu rosto de
rapaz evaporado entre flores,
alvorecer em tuas mãos como um junquilho
e atravessar sobre um cavalo muito negro as regiões
bombardeadas do teu sono
onde despontam as amoras dos defuntos.
Por vezes tenho aves esmagadas sob as plantas dos pés,
por vezes sofro e apodreço como um anjo
vascular,
um animal renunciando sobre a neve
e só levanto quando o sol é um batimento de chicotes,
uma lâmpada enfiada nos pulmões,
um flash branco a impregnar-se nos meandros
dolorosos dos ossos.
Por vezes posso ouvir-te do outro lado
da parede tumular,
posso escutar-te quando as águas estremecem,
quando à sombra já fraqueja o veio amargo do sorriso
ou quando à boca desaguam sangradouros,
bandos lívidos de pombos que debicam os nossos
sexos por baixo
e nos descarnam os espíritos
— os peitos que inauguram o amor dessas crianças
em exílio, que aceleram o bater de uma
cardíaca necrose.
Mas à hora em que as cortinas esvoaçam
e os quartos ardem como altíssimas fogueiras em seu
hausto menstruado
e um ar velado purifica as nossas carnes de penumbra
e em minha pele há um registo de perfume,
tu és o homem que fervilha para sempre
sob a luz dos girassóis,
o gémeo morto que acendeu os olhos
bíblicos do pássaro.
E é de lacre esta pulseira que nos cola e ossifica os tornozelos,
esta corrente em vibração subcutânea,
este cordão umbilical que nos uniu pelos canais
apodrecidos da garganta
e costurou as nossas línguas,
uma à outra,
até que ardêssemos à sombra de abajures fascinados
como um monstro a quem chamaram
bicéfalo.
Luiza Nilo Nunes nasceu em 1989, em Porto Alegre, e vive em Portugal desde a infância. É licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mestre em Estudos Editorias pelo Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro. Escreve poesia e ficção. Edita a revista literária Tlön. Recentemente traduziu uma das obras da poeta chilena Teresa Wilms Montt, livro a ser lançado em breve.