pietà a viva
Você é a viva sim. A que recebe e ampara a que acusa e abandona. A que se projeta adiante com o corpo feito um bólido futuro um corpo erótico de puro desejo de improvável engenharia.
E eu já sem órgãos um esboço um contorno todo roído um vazio preenchido pelo escuro. Uma atmosfera na qual não estou. Apenas minhas vestes de gás eu vejo desfazendo-se no azul.
Ou então sou eu que vivo. Que estou vivo no seu corpo agora como uma encarnação ilegítima. Com um rosto em suma falso uma pele desejada uma fraude prevista. Esta que aqui
se consuma. Então nossos lugares estarão trocados nossos rostos trocados. O oco que habitamos vem se deixar habitar. Um espaço vivo como se um vazio recíproco
graças ao qual
isto não é um documentário
É sempre mais difícil lamber o fundo de um prato de sopa. Sobretudo quando se tem nariz comprido. Caros amigos não debochem da fome alheia. Ela foi feita à sua imagem. Vejam quantos versos espirrados na parede. São versos sinceros? Poderiam ser seus? Vocês decidem. Vocês sempre decidiram. Mas hoje não vai ter moqueca de poeta. Vocês tiraram a sorte grande. O poeta entortou. O poeta mordeu a língua. A poesia encarquilhou. Resta apenas lamber o prato. A verdade que nos servem é indigesta. Vocês são péssimos cozinheiros. Seu real é nauseabundo intransitável claustrofóbico. Eu quero ar. Caros amigos que nos servem a vida em prato raso é para vocês que escrevo. É sempre mais difícil lamber o fundo de um prato de sopa. Especialmente em público.
cuspindo contra o vento
mesmo em plena ditadura
algumas crianças brincavam
crianças brincavam de cuspir
exercitavam cuspe à distância
deixavam marcas no muro
faziam barreira a formigas
misturavam barro no pó
cuspiam como falavam
crianças cuspiam sem desdém
sem ódio sem ferocidade
não escarravam em alguém
então as armas eram outras
e crianças quase sem porquês
crianças brincavam com cuspir
cuspiam como falavam
jogadas no mundo crianças
cuspiam com o vento crianças
conheciam o que era o vento
não cuspiam contra o vento
tinham os olhos bem abertos
talvez fossem apenas crianças
(outubro de 2018)
Marcos Siscar nasceu em 1964 (Borborema-SP). É poeta, tradutor e professor da Unicamp. Publicou os livros de poemas Não se diz (1999), Metade da Arte (2003), O Roubo do Silêncio (2006), Interior via Satélite (2010) e Manual de flutuação para amadores (2015), entre outros. Tem livros traduzidos na Argentina (No se Dice, 2003), na França (Le rapt du silence, 2007) e na Espanha (La Mitad Del Arte, 2014). Participa em antologias de poesia brasileira publicadas na Argentina, França, Portugal, Espanha, EUA, Bélgica, Inglaterra, Alemanha e Hungria. É tradutor de Tristan Corbière, Michel Deguy e Jacques Roubaud. É também autor de vários livros ensaísticos sobre filosofia francesa e poesia.