três poemas de Fabrício Marques

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Os olhos organizam a paisagem
no momento em que a manhã,
bloco bruto de granito,
lança seu manto branco de espanto
sobre o dia em transe e em trânsito.
No parque o velho passeia com a cuidadora
de frente para o jardim em que predominam flores fúcsias.
Crianças disputam uma bola preta pintada de dourado
mas que pode ser ouropel (sem nenhum desdouro).
Filandras se agitam como ondas azuis e crinas
sombra projetada ao meio-dia.
Tantas cores confundem e azucrinam,
mais uma vez o sol leva o crédito
pelo amarelo e seu repertório de alegrias.

A tarde range sua turbina iridescente
e repõe a dura luz do vermelho.
Em diversos pontos da cidade
as pessoas não param de funcionar.
Sentado no banco da praça, o vendedor
de enciclopédia pragueja contra a tecnologia.
O geólogo vê ao fundo a montanha
e se esforça para imaginar o mar do qual ela se ergueu,
índigo mar que reflete raios de acrílico serpeando sobre as águas.
Ele, o geólogo, hesita em dispensar de seu campo de visão
o verde em uníssono das árvores em torno.
Elas, as árvores, se fazem notar
como se em riscos erráticos mas definitivos
a nau grafasse, antes do naufrágio,
sua presença na superfície.

A noite conserva a conversa entre as cores
antes que o cinza empedre
o que foi salvo do dia.
A violácea membrana da noite
turva a volta para casa
do banqueiro com dedos gastos pelo manômetro.
Longe dali, o mineiro cava fundo na lavra a céu aberto
e o salário dele garante o passeio do pai no jardim de flores fúcsias.
Um tranco na alma avisa que
o ciclo pode se interromper a qualquer momento
como um cavalo que refugasse na corrida
e voltasse para o início
(nunca é o mesmo de antes)
quando todas as coisas recomeçam e recomeçam e recomeçam
desta vez em um mundo flutuante que admite
o cinza contra o cinza,
o cinza contra o esquecimento.

felizes

Felizes os felizes.
Felizes os infelizes.
Felizes nós, que não somos eles.
Felizes eles, que não são nós.
Os de passagem. Os terra à vista.
Os de pé descalços na areia.
E a multiplicação da noite,
o mistério antes de ser descoberto.
O silêncio depois da Criação.
Os átomos todos, em estranha harmonia.
O beijo sem nódoa, evidentemente.
Feliz a vista do outeiro. O sonho na neve.
O passeio na angra. A chuva no campo.
O orvalho na terra. A paisagem no prelo.

Felizes, nessa ordem,
o sábio brâmane,
o cavaleiro templário
e o pirata de chapéu tricórnio.

Um flamingo
— que acabei de inventar —
ergue o pescoço e morde
a parte mais frágil
da tua pele.
Mesmo mordida
por um flamingo imaginário
eras feliz, e sabias.

Feliz o afeto: é de quem pegar primeiro.
Feliz a grandeza
que chegou antes que a miséria.
Felizes a canção e o sol
que não estão nos autos.
Feliz a vida
que não tem jurisprudência.

Felizes os felizes.
E muito mais felizes os infelizes,
sempre prontos a confundir uns e outros, nós e eles.

trocas

Como pássaros em bando
que migram de um país a outro
atravessam o Mediterrâneo
escolhem um ponto no horizonte
e seguem na direção contrária
deixo no meu seu olhar
deixo no seu meu coração

desse alto ouço o sino o rufo da chuva trêmula na relva
vejo as cinzas da bandeira os espojos da pátria
a quaresmeira desgalhada
os guizos a hiena descontente o espantalho
ao fundo tocam um spiritual

de um país a outro
numa troca de olhares
resolvemos séculos de atraso

o Mediterrâneo vai ficando pra trás
no princípio era o verbo era o Lácio
noutro princípio eram fantasmas
exaltados no assoalho

Escolho um ponto no horizonte
pra trás fica a civilização
à frente o vazio o delírio
um poema sem valia me socorre

ah spiritual ah cachaça ah vastafala

ser esses pássaros em bando

existir nessa chuva que não para

saber um poema sem valia
ainda vale

Fabrício Marques é jornalista e escritor. Foi editor do Suplemento Literário de Minas Gerais e trabalhou em outras publicações de Belo Horizonte. Publicou, entre outros, Uma Cidade se Inventa (Scriptum, 2015), Wander Piroli: Uma Manada de Búfalos Dentro do Peito (Conceito, 2018), e A Máquina de Existir (poemas, Pedra Papel Tesoura, 2018), de onde foram extraídos estes poemas.