Acordei com uns pipocos e achei estranho. Pensei que santo era hoje, a memória não veio. Olhei a penteadeira, o oratório. A vista turva ainda, aquela neblina do quarto escuro, procurando lembrar. Santo nenhum. Não eram foguetes, atiraram no Ferrugem.
O Ferrugem, filho do Jorge Liso, foi baleado. Três tiros na caixa do peito, mas escaparam do coração. O pai levou para Feira de Santana esvaindo em sangue, jurando nunca mais roubar. O pai e o filho no mesmo caminho, o Jorge Liso ladrão de gado, o Ferrugem desde pequeno finório, amigo do alheio.
Quando afanaram as roupas do Zé, o meu filho, o Zé veio me dizer “Sabe, mãe, o Ferrugem deve ter comprado as minhas roupas do ladrão. Passa com elas na rua”. Isso tem mais de vinte anos. Minha neta nem tinha nascido, hoje ela é mãe. Eu falei “Zé, qual é a lei? Perdoai, assim como nós perdoamos as nossas falhas, não é mesmo?”
Mas hoje o Ferrugem já é um homem, deveria ter tomado jeito. O pai dele, Jorge, ninguém compra no açougue em sua mão, só se for por muita necessidade. As famílias que sabem dos mal feitos, quase todo mundo já foi lesado, ninguém compra a carne dele. Mas vamos deixando para trás.
Não falo dos outros por mal costume, não observo. Uma mulher tão cega como eu, coitada, a vista miúda, os dentes escassos e também cegos, eu nunca tive vício de especular. Sou avessa a comentários, apartada.
Esses dias de São João, quando completei idade, o Zé me perguntou “Mamãe, não vai fazer festa?” e eu respondi “Menino, esquece que o povo esquece” E assim foi, enojei de aniversário. O Zé tinha boa intenção e memória, desde moderna que festejo. Mas quando fechei setenta me veio um vazio de gosto, um pensamento severo e sempre assim. Deito no travesseiro e vejo os sentimentos aumentados, como passados em uma lente. Por isso falei do Ferrugem, mas quero contar de mim na minha casa.
Eu vejo os rigores que fiz com o Zé na infância do garoto, que deixei ele chorar de tonta que eu era, distraída. Certo que não foi por maldade, mas fui cruel. Eu envergonhei o menino na frente do pai e o pai na frente do menino, dizendo que não eram o que eu queria, que não pareciam dessa casa, que a casa era minha, que eu mandava nela. Agora, quando ponho a orelha na fronha sinto ali mesmo o cabelo encanecer e os olhos perolarem a cada sono mais um pouco, seja de noite, seja de descanso do almoço, o tempo talhando as rugas em cruz, a pele cheia de quadradinho. Foi maldade sim deixar o Zé chorar, e humilhar o coitado.
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Nem me preocupa pensar o que eu penso, sentir o que eu sinto, mas me pergunto porque vêm agora essas considerações sobre a vida inteira, como uma conta. Será que é o fim, meu Deus, será?
Esse menino, o Zé, já tem cinquenta anos mas vive aqui, se separou da mulher. Tem a casa dele mas só vai lá dormir, ceia comigo. De dia ele me toma pelo braço, me acompanha no banco e até a porta da igreja para eu não tropeçar, é meu anjo gordo.
Finjo distração para os cães que andam pela rua. Os cães acham que sou cão também e me olham encurvar, sumir, querendo que eu morra. Os cães são as moças e os moços mais modernos que o meu filho. Que me rejeitam, que rejeitam ele, e que cobiçam a pouca luz que gastamos para nossas sombras. Será o fim?
Quando deito no travesseiro, fico lembrando e sonhado, sem saber quando e quando. Anteontem me apareceu o Manuel, meu finado marido, dizendo:
— Raimunda, vem comigo. — E repetia, e eu dizia:
— Vou não, Manuca, vou não.
Olha, e o Manuel já tinha morrido antes do Jorge casar, ter a filha, agora me volta. E eu só via as costas, porque os mortos não mostram o rosto. Via assim um desenho que eu sabia que era ele, com roupas brancas numa plantação de bananeiras. Isso foi duas vezes. Ao menos estava de branco, e a plantação era verde, sinal de bom lugar. Deus o guarde nessas cores elegantes, seguimos orando.
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Minha neta é que tinha apego ao Manuel sem sequer conhecer. Menina ainda, com dois anos, olhava o retrato na parede e dizia “Eu falei com vovô Manuca” e todo mundo ficava espantado. A mãe, minha nora, mandava calar. Uma vez eu tirei o retrato da sala, não queria mais, a criança começou a chorar e a apontar para o lugar. Tive que prometer nunca mais mexer no quadro.
Puxando bem da memória, já sonhei com o falecido outras vezes, mas coisa mais pequena, só aquela presença passando. Uma noite ouvi a voz e quando acordei a cadeira rangia, ao pé da cama, alguém tinha se levantado. Mas nesta semana a visão foi mais clara, mensagem assim calma, confortável.
Outro dia eu tive um sonho bom, via a roça do alto, voava. Lá embaixo passava um rio cheio, agitado, refrescando tudo, e uns cavalos gordos corriam sobre as espumas, e soava alto uma música que Zé ouve todos os dias no rádio. Não sei cantar, é estrangeira. Quando eu estava naquela delícia, uma zoada qualquer me despertou. Perdi a delícia.
* * *
O meu sono é leve. Desperto se faz frio no meio da noite, porque tenho a pele fina e os ossos ariscos. Só esmoreço de vez com muito cansaço, como num dia desses, em que eu estava cozendo a mortalha de comadre Leotina. Eu apurava a vista, ia quase pelas onze da noite, e decaí sobre o pano alinhavado. Acordei com aquele relance:
— Acorda, Raimunda, capricha que estou necessitada.
Era a alma da comadre, advertindo. Acordei no susto e estranhei que a costura estava adiantada, como se a agulha tivesse trabalhado sozinha, e faltasse só o arremate. Meia hora depois e findou-se, e eu senti um perfume de mulher adocicado passando pela sala assim suave. Nem digo de quem era, pois na verdade eu não sei. Apenas me deu satisfação, como a música que eu contei dos cavalos. Vou lembrar o resto dos dias, mesmo que eu não saiba o nome, porque a gente não precisa saber para gostar.
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Desculpem mais uma vez que eu falei dos vizinhos, mas a verdade é que eu aqui oro por todos. Vejam, o Zé meu filho me disse de um sonho que lhe perseguia, que ele e o pai tinham matado um homem e juraram nunca tocar no assunto. Naquele devaneio o tal crime nunca era descoberto, mas o Zé acordava arrasado. A culpa de uma morte que nunca houve, o remorso sem ter sido nada, só um pesadelo, vez ou outra, só um pesadelo, vez ou outra. Até que um dia, faz mais ou menos um mês, ele se chegou bem cedinho:
— Mãe, pai já matou alguém? — E contou o resto.
É claro que eu fiquei alarmada, aquele sentimento que ele tinha, de sangue coalhado. No sonho havia uma cova de inocente, de um jovem que os dois tinham calado, ele e o pai. Não foi nada não, dali a pouco passou em minha porta a Semíramis, filha da velha Damiana. Ela me cumprimentou, a Semíramis sempre foi moça educada, embora eu na mocidade não me desse com a mãe dela. Então me lembrei de uma coisa que tratava sem consideração.
O meu marido tinha uma amante, justamente a Damiana, que por sua vez Deus levou também. E ela pariu um menino que o Manuel não quis saber. Eu indagava a ele “Olha lá, é a tua cara” mas o homem rejeitava, difamando a concubina, que tinha dormido com outro. O tempo passou, os velhos se consumiram e a criança cresceu. O menino da Damiana era alienado, o povo ajudava, até os parentes nossos, mas foi a Semíramis que arcou com o irmão, até ele falecer, já homem, um ano atrás. Eu sei que é uma história assim cruel, mas o Manuca era moço, e os moços são o que são.
Quando eu vi a Semíramis passar na minha porta toda gentil e serena, eu chamei o Zé lá de dentro e rezamos. Recordo daquela manhã, fazia frio. Nas plantas do meu jardim eu lembrava do filho da Damiana, que vestia as calças amarradas lá em cima, pobre rapazinho bronco que os moleques arreliavam. Era um jovem do corpo magro e branco demais, puxando à mãe, mas os olhos eram o amarelo mel das vistas do Manuel, das vistas do meu Zé, olhos de gato de pobre.
E por ser sem remédio a situação dos homens, então tratamos das almas, a quem demos a intenção. Não foram poucas as vezes que o Zé fez preces, a vela fincada na areia das plantas, e encomendou missas aos falecidos. Ele rezou mais do que eu, por ser do sangue do Manuel, e ter perdido um irmão e experimentado a pena. Só depois que assim foi feito veio essa calmaria de eu ver o meu marido de branco, apresentável, no frescor da plantação.
Eu não explico essas coisas, nem os sonhos que hoje mesmo vou ter. É só uma lente delicada, do fundo transparente. É só uma lente de água da minha vista cansada, da clareza de uma lágrima, da largura de um coração.
| com algumas fontes orais, inclusive uma recolhida pelo historiador Cícero Joaquim dos Santos, da Universidade Regional do Cariri (CE). Para Gilda Osvaldo Cruz. |
Franklin Carvalho é jornalista e autor dos livros de contos Câmara e Cadeia (2004) e O Encourado (2009). Em 2016, o seu romance Céus e Terra venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço Social do Comércio (Sesc), e em 2017, o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante com mais de 40 anos. O autor participou da comitiva brasileira na Primavera Literária Brasileira e no Salão do Livro de Paris (2016), eventos realizados na capital francesa, e foi palestrante na Feira do Livro de Guadalajara (México — 2017) e na Festa Literária de Paraty 2018.