Ana veio me visitar numa noite fria de julho. Por aqueles dias, soube que ela havia voltado. No começo, trocamos cartas e bilhetes, telefonemas rápidos. Nossos pais morreram alguns anos depois que ela foi embora, nos anos 70. Ana não veio para o enterro e fomos perdendo o contato.
De camisola de flanela, eu estava na poltrona do meu quarto-e-sala, enrolada num cobertor que levei da nossa antiga casa. Ainda que puído, esquentava muito, talvez porque de lã de carneiro, daqueles que não se fabricam mais. Meus pés vestidos com meias grossas descansavam sobre a banqueta de alumínio. Eu lia o jornal, algo sobre os grafites apagados nas ruas de São Paulo. Não fui até o fim; virei a página e comecei a ler uma reportagem sobre os cemitérios da cidade: Dom Bosco, Perus, zona noroeste.
Não escutei a campainha tocar, quando vi, lá estava Ana. Abracei-a demoradamente, acariciei seus cabelos. Continuavam negros e brilhantes, os meus já esbranquiçados, fios rebeldes que eu amarrava num rabo de cavalo.
Uma correnteza de vento frio no vão da porta entreaberta. Ana foi sentando ali mesmo, na banqueta. Não, minha irmã, sente na poltrona, aí é muito gelado. Ela mal respondeu quando escutamos uma música ao longe.
Eu sou o negro gato. Eu sou o negro gato.
Ana sabia que eu odiava. Colocava na nossa vitrolinha, certeira com a agulha. Quando acabava, punha de novo, e de novo e de novo, tantas vezes que acabou riscando o disco. Ela se divertia.
Eu sou o negro gato. Eu sou o negro gato.
Ela começou a cantar, acompanhando o som de fora.
Aquilo não é gato, sua bobona, é um rato!
Saí correndo, descendo os degraus das escadas, os ouvidos tampados, como eu fazia quando ela me provocava. Era o gato, era o rato, era o vento noroeste. Tropecei e caí numa vala. Vai para o morto, Ana, não reclama. Na queimada eu era melhor; esconde-esconde não, ela desaparecia nos lugares mais improváveis.
Eu sou o negro gato. Eu sou o negro gato.
Ana veio atrás de mim, descendo os degraus de dois em dois. Amarelinha, Ana, deixa que eu desenho. Pronto, céu-inferno. Ela pulava entre as marcas de giz, acompanhando o ritmo da música. Meus pés escorregavam na terra, eu suava muito, mas finalmente saí de lá. Ofereci minha mão, ela não conseguia alcançar.
Eu sou o negro gato.
Para com isso, Ana. Vamos de crapô? Foi ela quem me ensinou; eu nunca vencia, mas precisava distraí-la. Sorriu sem mostrar os dentes, os olhos apertados. Um baralho para cada um; conta doze, vira o morto. Carta preta, carta vermelha, preta, vermelha, preta. Jogamos uma partida, duas, três, perdi a conta.
Sua voz começou a sumir, foi escasseando, embora eu ainda conseguisse ler os lábios. Ana interrompeu o verso e fechou a boca. A música de fora parou no mesmo instante. A última palavra ecoava na minha cabeça — gato, gato, gato. Foi diminuindo aos poucos até sumir completamente. E veio o silêncio.
Eu lia o jornal, algo sobre os grafites apagados nas ruas de São Paulo. Não fui até o fim; virei a página e comecei a ler uma reportagem sobre os cemitérios da cidade.
Dom Bosco, Perus, zona noroeste, o nome foi mudado para Colina dos Mártires. No muro, grafitado: aqui tentaram esconder os desaparecidos.
Quando vi, lá estava Ana. Os cabelos continuavam negros e brilhantes. Uma correnteza de vento frio no vão da porta entreaberta. Não, minha irmã, sente na poltrona, aí é muito gelado.
Mônica Rinaldi é paulistana, mestre em Literatura Brasileira pela USP. Trabalha com edição e revisão de textos. Publicou contos em coletâneas pelas editoras Leonella Ateliê e Patuá.