Maquiada, de calça legging marrom, sandália estilo gladiador dourada, blusa com estampa de oncinha e bolsa reproduzindo a pele de zebra, ela se apresentava super fashion numa pele com mais de 70 anos. Antes de dizer qualquer palavra, apenas um detalhe fazia com que um olhar mais cuidadoso duvidasse de que seria só mais uma senhorinha vaidosa de Copacabana, um pentinho de plástico quase escorregando do alto da cabeça, parecendo que havia pernoitado ali e permanecia perdido naquele emaranhado de cabelo fino tingido de vermelho.
No diálogo meio confuso com a secretária do consultório dentário, ora se referia à forma como pagaria o tratamento, ora comentava sobre o que passava na TV, ou melhor, sobre o que ela entendeu que estava passando. Na tela eram imagens de bares, e alguém entrevistando pessoas que faziam refeições. O som estava baixo, não se ouvia exatamente do que se tratava.
— Filha, você escreveu aí que vou pagar em três vezes no dinheiro vivo?
— Está aqui, senhora, coloquei 3x.
— Não, eu quero que você escreva que é em três vezes, escrevendo, sabe? Para eu não esquecer depois. Esse “três xis” aí não dá pra ver… e essa coisa de dar gorjeta virou mesmo lei, é?
— Não sei, senhora. Vou marcar então a próxima consulta para segunda-feira às 11h, tudo bem?
— 11h é muito tarde! Não pode ser às 9, é que eu acordo cedo…gosto resolver tudo logo, sabe…
— O dentista mora longe e o trânsito na segunda é dos piores… 10:30h não está bom?
— Ele está muito dorminhoco, o que é isso! Já é pai de família! Dois filhos! Marque às 10h. E, olha… se eu precisar de ajuda para voltar, você pode me acompanhar até em casa? Eu moro na outra quadra, na esquina com o Banco do Brasil… é que às vezes me perco… minha cabeça não anda boa, também, vou fazer 82, garota…
— Tudo bem, Dona Henriqueta. Segunda, 10h. Tá marcado.
Estendendo uma nota de dez reais para a secretária, ela diz:
— Não dou gorjeta quando não gosto do atendimento… mas aqui eu faço questão.
— Imagina, senhora. Só estou fazendo o meu trabalho.
Sem graça, a moça a acompanha até a porta, apressada em se livrar do embaraço.
Chegou a minha vez. Não resisti em comentar o quanto achei perigoso aquela idosa estar andando sozinha por aí, não me parecia muito segura.
O dentista, um rapaz com não mais de 30 anos, nem perto de ser pai de família ou de filhos, relatou como Dona Henriqueta tornou-se sua paciente especial: na certeza de encontrar o dentista com quem se tratava há uns vinte anos atrás, ela entrou no consultório, sem hora marcada, procurando pelo Dr. Feliciano para concluir um procedimento dentário. Decepcionada com a ausência do amigo e perplexa com a mudança no local, disse que sentia muito pela suposta morte do doutor, mas confiaria no dom herdado pelo filho — no caso ele, Dr. Leonardo, filho de João, que nunca teve notícias de nenhum dentista chamado Feliciano naquele local — e retomaria o tratamento com muito gosto porque achou o jovem parecidíssimo com o pai.
E disse mais, especialmente naquele dia, ao término da consulta, ela lamentou até as lágrimas não ter se despedido de Feliciano, lastimou a rapidez com que o tempo passa e reforçou, depois de um caloroso abraço, não só a semelhança física, mas a gentileza e o carinho com que ambos sabem tratar seus pacientes.
Andréa Carvalho é formada pela UFRJ em Letras, professora e escritora. Foi uma das selecionadas para o Dia do Autor Independente na FLIP 2018 com 50 Dias Letivos, livro de crônicas baseadas na sua experiência como professora nas escolas públicas do Rio de Janeiro.