um milhão de fantoches (ou mais), de Matheus Borges

Observe este boneco, disse o titereiro ao indicar um dos muitos homúnculos de espalhados no palco. Observe este boneco e tente confundi-lo com alguém de carne e osso, talvez um amigo ou familiar. Observe este boneco e tente confundi-lo com um vizinho, até mesmo com seu pai, o homem que você vê quase todos os dias e pensa reconhecer a cor de seus olhos ou a extensão de seus braços. Tente por alguns segundos e você perceberá que essa é uma tarefa impossível. Porque, por mais que você tente, um boneco nunca poderá ser confundido com uma pessoa de carne e osso. Um boneco tem braços e pernas, tem olhos e boca, alguns inclusive têm belos cabelos e barbas compridas, unhas e articulações, covinhas nas bochechas e cicatrizes cirúrgicas. Um boneco, porém, não poderá ser confundido com uma pessoa de carne e osso, pois todos sabemos que um boneco é um boneco, por mais semelhanças que guarde com os seres humanos. Ainda que feito à imagem e semelhança de quem o criou, um boneco é um boneco e nunca será um homem, da mesma maneira que um homem nunca será Deus. Peço a você que pense nisso, disse o titereiro ao segurar as cordas que pendiam da parte mais baixa do auditório, peço que pense nisso por alguns segundos e peço também que considere a possibilidade de confundir a si mesmo com um desses curiosos modelos humanos feitos de tecido e arame, bem como peço, porém, que logo se esqueça de que pedi tudo isso. Afinal de contas, não estou aqui para falar de um boneco, ou fantoche, mas sim de um milhão (ou mais).

Um milhão de fantoches (ou mais), disse o titereiro ao desenrolar as cordas, vistos de longe se comportam como criaturas vivas. Não têm desejos ou ambições, porém se movimentam e é importante que se movimentem a fim de parecer coisas vivas. Para movimentar um milhão de fantoches ou títeres ou marionetes não é nem preciso que um milhão de bonequeiros se envolvam no processo, disse o titereiro ao estender as cordas sobre o palco, provocando a plateia com seus dedos de mago desempregado. Basta arrecadar uma vultosa quantia de dinheiro e adquirir sofisticado maquinário que emule as articulações dos membros superiores humanos, como se já é sabido que exista nos países desenvolvidos. Disse o titereiro, ao abrir o baú dourado, que é impossível reverter o processo de automatização iniciado ao final do século dezenove e que, disse ele manejando os membros superiores de um boneco caolho, as máquinas são capazes de quase tudo e muito em breve serão capazes de tudo, absolutamente, inclusive do pouco que não conseguem executar nos dias de hoje. Algumas máquinas hospitalares já respiram por nós, disse o titereiro ao abrir as costas do boneco caolho, já se movimentam e tomam decisões baseadas em uma série de complexas simulações.

Um milhão de fantoches (ou mais), disse o titereiro ao encaixar a primeira corda no boneco caolho, movimentados por maquinário oculto, podem ser vistos como uma multidão de carne e osso, especialmente se vistos de longe, como, por exemplo, através das lentes de uma câmera televisiva afixada num helicóptero que paira a duzentos metros do chão. Disse o titereiro que este ângulo em especial, chamado de plongée, é o mais eficaz para que a ilusão seja fabricada com êxito. Isso porque a câmera televisiva não conseguiria captar o maquinário oculto sob as vestes dos bonecos, digamos que longas batas amarelas, vistosas e reluzentes, que cintilam a cada movimento das engrenagens. Para que tais títeres sejam vistos como uma multidão de carne e osso, disse o titereiro ao colocar o boneco sobre a tampa fechada do baú dourado, é preciso que se estabeleça as condições necessárias para que exista verossimilhança no fato de um milhão de pessoas (ou mais) se movimentarem nas ruas, vestidas com longas batas amarelas. Assim que as batas estejam justificadas, estará justificada a procissão e a ilusão poderá ser considerada um sucesso. Assim sendo, é importante também que o titereiro estabeleça uma narrativa prévia. Basta que pareçam reais a fim de se tornarem reais, pois não estamos tratando aqui de indivíduos dotados de características complexas, mas de uma massa sem rosto que se move numa única direção.

Imagine porém, disse o titereiro com suas longas mãos controlando pandorgas invisíveis, que um observador externo se disponha a um exame minucioso da procissão de um milhão (ou mais) de fantoches ou coisas, indivíduos para todos os efeitos, gente letárgica ou eufórica, marchando em compasso sincrônico, o ritmo das máquinas ocultas que dominam o espaço público. Imaginem que esse observador externo se aproxima e descobre ao menos um indício da existência do maquinário. Um titereiro experiente, como eu, como todos vocês, um dia espero, não se deixará abater por esse ínfimo deslize. Basta que recuperemos a narrativa prévia oferecida como justificativa à procissão de um milhão de fantoches (ou mais), a procissão de indivíduos. Ao recuperar essas informações, explicou o titereiro ao sentar no baú dourado ao lado do boneco caolho, os indivíduos de carne e osso que nunca marcharam na procissão fabricada, mas que, ao observá-la através das câmeras televisivas em plongée a duzentos metros do chão, sentiram-se representados por toda aquela gente, sejam títeres ou não, pois bem, disse o titereiro ao cruzar as pernas, essas pessoas se tornam extensões de nossos bonecos e defenderão suas existências custe o que custar. Vejam bem que a partir daqui os títeres deixam de ser títeres e se transformam em avatares das pessoas de carne e osso contaminadas pela narrativa prévia.

O titereiro novamente se ergueu e soltou um pigarro, gesto espontâneo que serviu como primeiro indício de que ele próprio era um indivíduo de carne e osso e não apenas outro boneco entre tantos outros bonecos que ornavam o auditório, inclusive na plateia, como se atentos ao discurso daquele que os fabricou numa oficina grosseira. Um milhão de fantoches (ou mais), disse o titereiro, movimentando-se a céu aberto numa tarde quente. Por mais concretos que se mostrem os indícios de um maquinário secreto, o indivíduo de carne e osso contaminado pela narrativa prévia nunca admitirá a existência mirabolante de tal mecanismo. Afinal de contas, admitir a existência de um maquinário secreto é assumir que a multidão que o representava não passava de um exército de títeres — e isso seria o mesmo que admitir que o indivíduo, ele próprio, não passa de um títere. E sob quais circunstâncias um títere poderia descobrir que é um títere?, perguntou o titereiro. Nenhuma, é claro. Pois o títere não pensa e não descobre. Esse também é o raciocínio dos indivíduos de carne e osso: “Se um títere não pensa e não descobre, então o fato de que me acusam de títere é falso, porque eu penso e descubro e acredito”.

O que o indivíduo de carne e osso falha em apontar é que, para todos os propósitos, ele agora também é um títere, pois seus pensamentos e descobertas de nada valem àqueles que nele provocaram essa estranha identificação com objetos inanimados. Só o que importa ao titereiro é essa identificação, ou o fato de que o indivíduo de carne e osso também se movimenta, assim como aquele milhão de fantoches (ou mais). Enquanto o indivíduo se movimentar e associar seus movimentos ao movimento da falsa procissão, então a ilusão permanecerá intocada. “Se um títere não pensa e não descobre, então o fato de que me acusam de títere é falso, porque eu penso e descubro e acredito”, repete o indivíduo, sem perceber que esse raciocínio que lhe confere autonomia é o mesmo que lhe impede de enxergar os dedos que manipulam suas cordas. Falha também ao títere, fantoche ou marionete perceber que nunca é ele próprio o centro do espetáculo. Quando cerrarem as cortinas, ele será colocado de lado, guardado num baú dourado como o meu, e quem toma o centro do palco, a fim de receber os aplausos, é o mestre titereiro, ele próprio parte ilusionista e parte dramaturgo, o homem que dita as regras de seu universo-modelo, cujas palavras foram reproduzidas ao longo de sessenta minutos por uma criatura descartável de tecido e arame.

O titereiro disse tudo isso e retornou ao centro do palco, onde um holofote o iluminou por trinta segundos enquanto era aplaudido. Assim que cessaram os aplausos, o feixe de luz acompanhou sua caminhada ao baú. Ele ergueu a tampa usando as duas mãos, acomodou a si mesmo junto ao boneco caolho e ambos permaneceram imóveis. De cima do palco vieram duas mãos enluvadas e fecharam o baú com uma imensa chave de prata. As luzes se apagaram, mas ninguém percebeu que o espetáculo chegava ao fim.

Matheus Borges (Porto Alegre, 1992) é escritor e roteirista de cinema, formado pelo curso de Realização Audiovisual da Unisinos. Foi aluno de Luiz Antonio de Assis Brasil em sua oficina de criação literária. Seus contos já foram publicados em revistas no Brasil (Sexus, Subversa, Gueto) e no exterior (Waccamaw, Fiction International). A Colmeia, seu primeiro longa como roteirista, tem estreia prevista para 2019.