divã, de Luciana Pinsky

Eu a encontrava nas terças-feiras às seis da manhã. Ela sabia tudo da minha vida: do meu primeiro grito, da minha última fuga, do meu intenso amor, e de tantas e inúmeras falhas tão bem escondidas até então. Também de Luís, claro. Que não era minha vida, mas tinha sido um pouco mais que isso.

Era boa ouvinte e eu uma faladeira de marca maior. Se ela sabia tudo de mim, o oposto não poderia ser mais falso. Aos cacos, depois de meses, uma coisa ou outra eu pegava. Que ela, como eu, sofria de gastrite, mas a dela estava controlada e a minha em plena ação. Que ela, como eu, adorava praia, mas que construiu intimidade foi com montanha. Mas eu nem investigava muito, pois, como bem diz uma amiga, há coisas que é melhor a gente não saber.

Pois por dois anos e nove meses eu ia me revelando e me entendendo. Luís rareava no papo, mas de vez em quando surgia e ela me ajudava a vê-lo sem os óculos de 3D da labirintite. Em uma dada semana, porém, ela pediu para trocar o horário de terça para quinta. E aí…

* * *

Sempre fui fã de Aurora, apesar do medo que por vezes sentia dela. Nessas horas nem queria aparecer, pois temia a mirada daqueles olhos falsamente plácidos. Naquele tempo de antigamente, cheguei a contar para Rosa o conteúdo de algumas sessões e ela reagiu com raiva de Aurora. Imagina… Tudo para não ficar com raiva de mim, creio.

O que eu omitia, disfarçava, procurava não perceber, lá eu contava, explicitava, percebia. Eu que nunca fui de chorar, passei a soluçar. É como diz um amigo: a vida não é fácil. Mas também não precisa ser tão difícil, Aurora. E ela, de certa forma, foi me mostrando que eu não precisava cultivar minhas dores com o mesmo carinho com que cuidava da horta lá de casa. Passei a regar menos as mágoas, as dores, as tragédias.

Depois de uns cinco anos entre idas e vindas, sentia-me finalmente mais leve, mais centrado, quase calmo. O tempo, Aurora, me resta pouco tempo para encontrar a paz. Você, uma antiga hippie, me diga, a paz existe? Foi assim que minha última sessão terminou, sem nem uma lágrima.

Na quinta-feira seguinte cheguei meia hora adiantado, às 7h, pois caminhei em ritmo decidido, raro em mim. Entrei, sentei na sala de espera, pus meus óculos de leitura e concentrei-me naquele livrão que me arrebata. Mesmo profundamente entregue à leitura, algo me fez levantar o olhar. Havia um jeito muito familiar naquele descer de escada que eu só enxergara com o rabo do olho.

— Fulô? O que você está fazendo aqui?

— Eu que te pergunto, Luís, o que você está fazendo aqui? Eu acabei de sair da minha terapia, ora.

— E eu vou entrar na minha.

— Com a Aurora?

Ai.

Sim, os dois dividiam a terapeuta sem saber. Aurora nunca notara, pois Luís se chamava Luís Paulo e sempre se apresentava pelo segundo nome. Rosa era a única a chamá-lo de Luís “para ser original”, dizia. E ele só a tratava por “Fulô”. Ele, tão pouco dado a apelidos, encasquetou com esse desde… desde sempre talvez. A “Fulô” a quem Luís se referia, tão generosa e calma, em nada parecia com a Rosa ansiosa que Aurora atendia. Já o “Luís” de Rosa, quase sobrenatural, era muito diferente do Paulo absolutamente mundano que toda semana deitava no divã de Aurora.

— Mas o que vamos fazer?

Rosa deu meia volta. Subiram a escada juntos e assim entraram na sala. Revelado o problema, Aurora ficou confusa. Em trinta anos de profissão, nunca nada parecido ocorrera. E agora?

— Nós temos uma sugestão, disse Rosa (a Fulô).

— Já que você nos conhece bem, tanto como sujeito quanto como objeto, queremos ser atendidos juntos, completou Luís (o Paulo).

— Mas…

— Sim, achamos que esse encontro agora, do nada, tem sua razão de ser. Talvez seja isso. Conversaremos sobre aquele momento e entenderemos quem somos, quem fomos, quem seremos.

E assim, Rosa e Paulo (ou Fulô e Luís, se assim você preferir) passaram a se encontrar toda quarta-feira às 6h30 da manhã no divã de Aurora.

Luciana Pinsky é, originalmente, jornalista, com passagem pela revista Época e pelo jornal Valor Econômico, entre outras publicações, e se enveredou para a ficção, especialmente para crônicas. Publicou um romance, Sujeito oculto e demais graças do amor (Editora Record). Atua, desde 2005, como editora de livros pela Contexto. E mantém seu blogue de textos ficcionais: http://lucianapinsky.blogspot.com/