uma mulher direita, de Micheliny Verunschk

Seu pai não mora com vocês? Ela não lembrava de ter perguntado isso à amiga, mas certamente perguntou, porque uma narrativa sobre o homem misterioso e pouco presente se assentou em sua memória: O pai da amiga trabalhava muito e fora da cidade, tinha pouco tempo para estar com as filhas e a mulher, por isso vinha de tempos em tempos apenas. Os pais da amiga se trancavam em casa nessas ocasiões e as filhas brincavam o dia inteiro na rua, supervisionadas por uma prima mais velha, que cuidava delas. Seu pai trabalha em quê? Ela achava que fizera essa pergunta um dia, mas não teria obtido resposta, pois não havia qualquer resquício de lembrança a esse respeito. A rua era pouco movimentada naquela época, as crianças de bicicleta, jogando bola, correndo atrás umas das outras, essas ocupações de crianças duas ou três décadas antes, quando, dizem hoje, o mundo era melhor, sem essas violências.

A mãe da amiga era enfermeira, ela a vira algumas vezes na Casa de Saúde, a saia branca de tergal, prática porque não amassa, ela lembrava bem de um desses anúncios da TV, a blusa branca de botões, e um chapeuzinho que parecia feito de dobradura, um bibico, diziam, que lhe davam um ar autoritário. Era uma mulher magra, alta e muito branca, os cabelos pretos, e um pouco abaixo do queixo, levemente ondulados. O nariz fino, o queixo pontiagudo e dois olhinhos sagazes e severos. Parecia estrangeira, e de certo modo era, se não estrangeira, mas uma forasteira. Conhecera essa palavra ao vê-la pintada de verde numa pedra na entrada da cidade: Não gostamos de forasteiros! O pai lhe explicara o significado da palavra, mas não conseguira compreender o contexto. Era como se a cidade não tolerasse ninguém que fosse de fora, como se todos dissessem isso a partir daquela pedra. Não gostamos de forasteiros. Era grosseiro, pensava. E quando ouviu alguém, possivelmente a tia, se referir à mãe da amiga como forasteira, pensou que talvez por isso ela fosse sempre tão reclusa, porque ninguém gostava dela ali. Porque quando não estava de plantão, a mulher raramente saía de casa e quando saía, para a feira, a padaria, o mercado, passava, empertigada, o olhar fixo para a frente, como se nada a pudesse distrair. Parece mesmo uma mulher direita, ouviu a vizinha replicar a tia.

A amiga era a mais velha das três irmãs, uma menina muito branca como a mãe, e sardenta. Seu apelido era Bijou, mas desde que a adolescência chegara, preferira não ser chamada mais dessa forma. Algumas coisas mudaram para além do corpo, os primeiros sutiãs se inflando lentamente, o desinteresse geral pelas coisas que até ali haviam sido interessantes, as incursões pelos terrenos baldios em busca de fadas, os piqueniques mal planejados no parque em ruínas, o único da cidade. Suas próprias irmãs menores eram infernais e a amiga, a única com quem poderia contar foi, lentamente, se afastando. Não para ficar como a mãe, reclusa e direita, mas porque mais fulgurantes amizades se desenhavam no horizonte.

Lembrava bem do episódio na escola em que a amiga demarcara seu novo lugar. Nádia era uma menina negra que desde pequena estudava com as duas e a quem no jardim da infância se colou, anos a fio, a fama de piolhenta. Piolhentos todos eram naquela época, se ela bem lembrava, mas coube a Nádia o peso da palavra com a qual a magoavam cotidianamente. Depois de alguns anos tudo fora esquecido, ou melhor, substituído, posto que à aluna nova, Cely, os meninos chamavam de aberração, não que tivesse qualquer anormalidade, mais alta que a maioria, as espinhas despontando precocemente no rosto. Ela que um dia fora sorteada para ficar num grupo de trabalho com as duas meninas, delas se afeiçoara. Nádia era muito madura, no sentido em que as pessoas que passam por longos sofrimentos o são, e Cely, fútil e avoada, talvez um tanto desprovida de grandes voos de inteligência, era divertida. Nádia e Cely eram, enfim, ótimas companhias.

Era uma tarde quente e estavam ela e a amiga no terraço, deitadas ao chão, escutando música num gravador portátil, quando a amiga apertou o botão stop e, muito séria, fez a exigência: você deve deixar de tanta conversa com a Piolhenta e a Aberração. Não, não era um filme de adolescentes americanos que passava na sessão da tarde, mas uma exigência real e arrogante, uma condição de continuidade para a amizade das duas que, a partir daí, esfriou impressionantemente. Os dias passaram, a mágoa foi dando lugar ao estranhamento, mas ainda voltavam juntas da escola para casa entre alguma conversa e poucos sorrisos. Semanas depois, a amiga chegara se vangloriando de ter o endereço de uma boy band de sucesso. O endereço fora exibido e não compartilhado com ninguém, as meninas da sala desesperadas, prometendo ajuda nas lições, lanches na cantina, o que ela quisesse. A amiga recusara todas as propinas e, meticulosamente, dobrara o papel e dissera, está aqui e ninguém pega. Todas se amedrontaram, exceto ela, que achava aquilo tudo uma grande bobagem. Numa oportunidade, remexeu as coisas da outra e copiou o tal endereço. A amiga logo soube que seu tesouro havia sido devassado e a vingança fora cruel. No meio da sala, na hora do recreio, a acusou de ladra e acrescentou: Quem rouba um endereço, é capaz de roubar tudo. Tenho certeza que é você a ladra da escola. Sim, ela lembrava, há dias que sumiam pequenas coisas das mochilas de uns e de outros. Quinquilharias. Borrachas perfumadas, pincéis da aula de artes, apontadores decorados com estojo, papéis de carta. Era o preço, ela soube depois, por continuar sendo simpática com as meninas malqueridas que, afinal, foram as únicas a se relacionar com ela durante aquele longo ano escolar em que se tornara, ela sim, uma forasteira.

Então via, ao longe, com inveja e mágoa, a antiga amiga florescer entre reluzentes novas amizades, a filha de um médico sempre paparicada, a sobrinha do prefeito, meninas e garotos que passavam as férias na praia e que certamente tinham piscina em casa. Ela pediu desculpas por ter mexido no papel com o endereço, mas depois da terceira tentativa acabou desistindo, porque era terminantemente ignorada. Nas férias do verão seguinte, quando sofreu um acidente de carro que a fez ficar imobilizada por alguns meses, com uma pesada armadura de gesso em torno do tronco, finalmente conseguiu matar as esperanças de reatar a relação. Nenhum telefonema ou bilhete, e lembrava quantos bilhetes escreviam uma para a outra aos nove anos, nenhum olhar solidário por parte da amiga quando retornou à escola, ainda com um colar cervical, apenas um ou outro sorriso maldoso que julgava flagrar, às vezes. Até então oscilava entre a raiva e a culpa, raiva da reação, que achava desmedida por um tolo sonho de mandar uma carta ou fotografia para os distantes rapazes que rebolavam no programa musical da TV, culpa por ter caído naquela esparrela. Depois restou a raiva e, por fim o desprezo.

Quando, mais tarde, depois de um tempo morando fora do país, onde por pouquíssimo tempo se sentiu forasteira, apesar de a língua ter, no início, travado, como as fundações das pontes sobre o rio Usk, as ruínas do castelo, as docas, as ruas sinuosas, os corredores da universidade como labirintos sempre a serem desvendados, retornou à cidade e achou tudo tão diverso e igual, da casa do pai à velha rua, sentiu vontade de rever a amiga e cumprimentá-la, mas a casa dela nem mais existia, e era agora um pequeno prédio cinza de três andares. Quis revê-la não exatamente para exibir o sucesso que a vida a deixara conquistar, menos a notícia que a tia fazia questão de espalhar por todos os lados, a sobrinha morando no estrangeiro, falando inglês em Camelot, mas talvez o fato de que não era mais aquela menina mendigando um olhar.

Quando encontrou um amigo de infância e bêbados atravessaram a cidade cantando músicas daquela época e perguntou por Bijou, e ele lhe contara, então, que a mãe dela envelhecera marcial e empertigada como sempre fora, apesar de sua condição de amante de um homem anos a fio, tomou um susto. Ela, a amiga, e suas irmãs, bastardas. A mãe, a outra. Sua família, família de segunda categoria, o peso que aquilo tinha naquela época, e o segredo que vazara por uma vizinha que encontrara o homem, o pai, com a família legítima na capital, ele disfarçando o susto de ter sido pego em flagrante. Então sentira verdadeiramente pena da amiga, que morrera uns anos antes, um tiro num assalto desastroso, e lembrou subitamente da última vez em que entrara no seu quarto, as bonecas que o pai lhe trazia todas na caixa, em altas prateleiras, e sobre a penteadeira, a coleção de borrachas perfumadas, apontadores, papéis de carta, pincéis. Quinquilharias.

| conto do livro inédito Desmoronamentos, a ser publicado em 2018 pela Editora Nós. |

Micheliny Verunschk é autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010) e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Finalista, em 2004, do prêmio Portugal Telecom com o livro Geografia Íntima do Deserto. Publicou em 2014 seu primeiro romance, Nossa Teresa — vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, com patrocínio do Programa Petrobras Cultural), vencedor do Prêmio São Paulo de 2015; Aqui, no coração do inferno (Editora Patuá, 2016) e O peso do coração de um homem (Editora Patuá, 2017). É doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Prepara, entre outros projetos literários, sua poesia reunida.