professoral, de Leandro Jardim

Se eu assumir a mediocridade, o que é
Que restará de mim senão a providência?

Sempre ouvi críticas por meu tom professoral. Ainda assim, convidam-me todo ano. Às vezes, fico a divagar sobre os motivos disso. E concluo que a insistência em meu nome só pode ser consequência da minha paixão pela ficção, esta que eu tão idiossincraticamente demonstro pelo meu ofício. Embora nunca tenha sido formulado com tal palavra, paixão. Nem mesmo eu a usaria, notem, soa piegas, sentimental. Mas, preciso reconhecer, talvez paixão seja mesmo a expressão que melhor define aquilo que importa, que mobiliza, que faz o outro achar graça de nós, que deixa a minha sala de aula cheia e me traz a eventos acadêmicos como este à nossa volta. A curiosa paixão pela ficção. Afinal, eu realmente não tenho outras grandes qualidades. Leio menos do que os meus colegas deste portentoso Centro de Estudos de Língua e Literatura Castelhana, não sou tão erudito quanto eles, e minhas publicações nunca repercutiram em polêmicas no La Nación.

Na presente ocasião, portanto, peço licença para narrar um enredo por trás da minha participação. Um segredo recente e que revelo hoje, quase uma charada. Refiro-me a Josefina. É a história de como cheguei até ela, e também uma possível história sobre como cheguei até aqui. Josefina, devo dizer, é a assistente da organização. Também auxiliar da curadoria, ou primeira secretária, ou produtora, e que por pouco não foi escolhida como apresentadora também. Digamos, a alma da presente edição do nosso querido e anual Simpósio de Literatura e Pensamento da Universidade Nacional de Assunção. E não será à toa que se chama Josefina. Acreditem, hoje estou aqui por causa dela, pelas portas que abre.

Parêntese 1 [A fala de abertura teria sido feita pelo emérito professor Raúl Amaral, que cancelou na véspera alegando não passar bem devido a um pequeno acidente doméstico.]

Tudo começou com o meu inusitado desconforto de, pela primeira vez, não ter sido oficialmente convidado a participar. Seja como mediador, palestrante ou debatedor, não me escalaram para posição nenhuma. Por que será?, me pergunto. Logo eu, pareceu-me injusto. Para quem não me conhece, devo dizer que a tal paixão pela ficção se manifesta, na prática, no jeito bastante particular pelo qual leciono minhas aulas de literatura paraguaia. Eu crio e interpreto personagens com estilos diferentes de oratória para cada tema. Invento variadas nuances de meu tom professoral como uma espécie de estratégia lúdica para adequar a oratória ao conteúdo e aos objetivos da disciplina. Muitos alunos se incomodam, mas a maioria acha graça. Às vezes, mudo até o modo de me vestir. Sou ao mesmo tempo um e muitos professores, mas nenhum deles teria sido convidado esse ano. Tentei encontrar as respostas para isso. Talvez tenham pretendido me deixar de lado por já estarem saturados da minha versão autoconfiante, aquela que destila uma falsa modéstia em falas cuidadosamente humildes e doces. Ou se cansaram também da minha persona que profere discursos contraditórios, em que tudo se resume a uma estética dos paradoxos. Talvez seja porque já não aguentam mais aquele outro, o que gosta de provocar nos ouvintes uma irritação simpática e milimetricamente planejada. É possível, por fim, que estejam enfastiados até da versão mais caricata e débil, na qual exponho fragilidades buscando empatia e proteção. Tudo já muito batido, provavelmente. Concluí, então, que talvez eu precise inventar outra coisa. Uma personagem feminina, quiçá. Alguém com quem interagir. E, sabia, a nossa literatura haveria de me prover inspiração.

Assim, começo narrando o episódio que forja este argumento, o meu argumento, meu único argumento. Será também, portanto, uma confissão e uma declaração de princípios. Eu andava deprimido, as dores do mundo tinham me alcançado, precisava de alguma esperança. É o que justifica o que fiz nas últimas semanas. Arquitetei ardilosamente uma trama para que me convidassem a participar do evento literário. Não por vaidade, carência ou ciúme, o fiz por Josefina, em quem eu jamais consegui parar de pensar. Josefina, minha paixão e ficção, cuja beleza sutil e intensa é a menor das qualidades. As artimanhas que usei para chegar até ela deram certo, naturalmente. Para o ficcionista, sempre darão. Não à toa figuro hoje aqui. E enquanto descrevo, consigo pressentir os olhares furtivos que, de algum lugar, Josefina dedicaria a mim. Desculpe-me por estar usando seu nome assim, Josefina, mas é vital que a gente se entregue por inteiro se queremos oferecer algo à literatura e ao leitor, você sabe, é uma lição inicial.

Prossigo com a breve história. Conforme o tradicional período de realização do evento ia se aproximando, comecei a estranhar que ninguém tinha me procurado ainda. Está certo que a organização agora estava nas mãos de alunos mais jovens. Deixar tudo para última hora parece ser o estilo de vida dessa geração. Mas há certos limites. Estamos falando do principal encontro de literatura e pensamento de Assunção. Recebemos alunos e professores de todo o Paraguai. Temos uma tradição a zelar. Escrevi para os organizadores. Responderam de maneira simpática, despreocupada e com a proposta de uma reunião para que pudessem mostrar o estágio avançado no qual acreditavam se encontrar.

Quem entrou em minha sala no dia combinado foi Josefina. Sozinha. Disse que seu colega teve problemas de última hora e por isso não viria. Mas ela dava conta, frisou. Não duvidei. Os delicados traços de seu rosto conjugavam beleza, força e assertividade. O vestuário fora meticulosamente escolhido para transparecer despreocupação. Nas primeiras poucas palavras, exibiu ainda um sotaque estranhamente madrilenho. E logo me ensinou que a inteligência pode também falar pelos olhos. Já tinha dado conta antes mesmo de se sentar, pensei, era uma personagem ideal. O planejamento do evento estava ótimo, também. Mas eles, ou ela, tinham me deixado de fora da programação. Ela, suspeitei.

Parêntese 2 [A vida de Josefina. Nascida em uma área humilde de Loma San Jerónimo, perdeu os pais cedo. Na pré-adolescência, sua avó a enviou para um internato católico. Lá, foi apadrinhada por uma madre superiora, chamada Dora de Artecona, e que nas horas vagas era também poeta. Vivia a sugerir livros para Josefina. Os livros a salvaram, portanto, se me permitem o clichê. O único colorido de seus dias vinha das romanescas histórias e do lirismo de poemas que lia na biblioteca escolar. Sem perceber, decidia ser escritora, enquanto conscientemente elaborava que a sua única alternativa eram os estudos. Ainda não foi minha aluna.]

Mas não vão abordar a importância fundadora da poesia de Campos Cervera? Não repensarão algum romance menos famoso de Roa Bastos esse ano? Fiz tais perguntas, citando os autores que são a minha já notória especialidade, claro, em tom jocoso e protocolar. Na hora, dei a entender que aquilo tudo soava muito repetitivo e, na verdade, eu estava aliviado de poder descansar esse ano. Josefina pareceu ao mesmo tempo satisfeita e irritadiça. A literatura paraguaia vai muito além disso, disse-me. Já passa da hora de falar mais das autoras mulheres, de hoje e de antes, completou. As mãos esguias e exuberantes eram tão firmes que intimidavam. Foi difícil não ceder ao efeito hipnotizante da cadência com que se moviam à minha frente. Mas, afinal, a autoridade ali era eu, a autoria ali era minha, não me deixei esquecer. Ela então agradeceu, despediu-se, e rumou para a porta. Ao vê-la prestes a me deixar, intuí que eu não podia estar ausente de jeito nenhum. Eu precisava encontrar um jeito de dar sentido à minha paixão. Só me restava, portanto, tramar alguma ficção. O fiz por ela, Josefina.

Não deixei que saísse da minha sala, convidei-a de volta a se sentar. Pedi outras reuniões, exclusivamente com ela, ali mesmo à minha mesa. E daí começou um pouco de intimidade. A estratégia que usei foi escrita de maneira improvisada e parecia estranha até para mim, mas me era ao mesmo tempo apaixonante e irresistível. O que eu queria era primeiro ganhar sua confiança e respeito, só para entrar no evento. E do palanque, aí sim, eu faria um discurso em seu nome tão memorável que a conquistaria de maneira definitiva.

No entanto, como podem notar, e por razões desinteressantes que não convém abordar agora, meu plano não funcionou desse jeito. E o resultado foi quase o oposto disso. As ficções requerem também o imprevisível. É ele que nos traz aqui. Josefina não cedia às minhas sutis investidas, nem mesmo as notava. Ou fingia não notá-las. O projeto foi perdendo o sentido e, com isso, a falta de inspiração me devolvia ao estado deprimido. Escrevi pouco. Em um dos nossos encontros, ela me mostrou um pequeno texto. Suspeito que tenha percebido que eu estava abatido. É provável que intuísse a origem da minha tristeza na perda de prestígio acadêmico e na impossibilidade de ter minha paixão correspondida por ela. O fracasso que me rodeava era o espelho da minha mediocridade. E quando até a paixão pela ficção parecia arrefecida, ela me ofereceu a poesia. Leio Josefina.

Descascando a palavra esperança, encontrei polpa de maçã
e caroço de pedra
Descascando a palavra amor, achei pele de pêssego
e carne de cinza
Descascando a palavra verdade, enchi as mãos
e ao chegar à minha boca, não existia*

Ao final da leitura, alguma coisa aconteceu comigo. E isso é tudo. À minha frente, surgiam duas Josefinas, a do texto e a outra de pé, parada, a me encarar, esperando uma reação. Para mim, dizia da possibilidade de a literatura mais uma vez ser escape e salvação, de novo e de novo. Assim como na história de Josefina, das Josefinas, assim como na minha e na história daquele instante. E nada mais. Talvez estejam se perguntando sobre o porquê de eu estar contado tudo isso. Mas a ficção não requer uma moral da história. A moral é a história. Assim como em poesia, onde a forma é o conteúdo, e vice-versa. Quero também pedir desculpas pela extensão, e dizer que espero ter sido capaz apenas de distrair um pouco essa plateia tão atenta. É na distração que se enxerga o invisível. Já terá valido o meu esforço. Numa próxima ocasião, eu até posso voltar a tratar também de Roa Bastos ou Campos Cervera, especialmente para os que frequentam minhas aulas de história da literatura paraguaia. Mas por hoje, tenhamos os olhares centrados em nossa homenageada, Josefina. E que fique também a ideia de que todos nós haveremos de conceber, naturalmente, cada um, uma Josefina distinta. Quando a lemos, a criamos. Afinal, diria o professor, o outro é sempre um personagem composto pelo filtro ficcional do nosso olhar. Eu mesmo, por exemplo, descascando a palavra olhar, encontrei caneta e pensamento. Foi um presente de Josefina.

E com isso gostaria de encerrar a fala inaugural. Ouçamos agora os outros convidados, que certamente terão mais a dizer sobre as Josefinas lidas e vividas de cada um. Muito obrigado.

Parêntese 3 [Os versos da epígrafe são de autoria de Madre Dora de Artecona e também constavam em meio aos papéis que Josefina me entregou.]

* Versos do poema “Pelando la palabra”, de Josefina Plá (1903-1999), poeta, ficcionista e ensaísta paraguaia. Ao longo da vida, Josefina Plá ganhou muitos prêmios tanto pela literatura quanto pela defesa dos direitos humanos e igualdade de gêneros. Teve grande influência nas gerações seguintes.

| conto da coletânea Nosotros: 20 contos latino-americanos (Editora Oito e Meio, 2018). |

Leandro Jardim é escritor de poesia, prosa e letra de canção. Seus livros mais recentes são A angústia da relevância (romance, 2016), Peomas (poesia, 2014) e Rubores (contos, 2012), todos pela Editora Oito e Meio. Em parceria musical com Rafael Gryner, lançou os EP’s O sonhador (2014) e Sementes musicais para um mundo cibernético (2011). Também escreveu canções com parceiros como Diogo Cadaval (banda Mocambo), Clara Valente e Matheus VK. Possui contos e poemas publicados em diversas antologias revistas e literárias.