epílogo fora de lugar
encontro-me finalmente seca e gélida como folha de árvore caduca em inverno de neve, e é seco pela frieza que vivo em plenitude, na abundância do que tenho de melhor. sou realmente feliz e farta nos momentos de aridez da alma, na temporada de desidratação da hipocrisia romântica; sou tranquilidade e transbordamento de mim mesmo nos preciosos períodos de desamor; neles sou arisca, maldoso e ardilosa, e vejo o que o idiota nunca viu ou fingiu não ver. é no desamor e no desgosto pela existência que consigo tornar-me escritor. oxalá que todo amor me torne seca. onde quer que eu esteja.
* * *
começo
aqui sou noite constante. penduro-me em um cabide no fundo de um armário e tranco a porta. uma vez longe de mim, consigo sentar-me e escrever sobre o que não sou. e ao escrever sobre o que nunca fui, faço-me entender em essência.
* * *
recomeço
na verdade, sou inveja. acabo de ver na TV alguém que admiro e não suportei. perdi o sono, levantei-me com enxaqueca e com a disposição de ser melhor do que ele. melhor em quê? não sei. em tudo, talvez. apenas preciso ser. tenho uma receita ótima que sempre me faz dormir quando pressinto a insônia provocada pela inveja ou pela raiva que também me consome de tempos em tempos. respiro fundo por alguns instantes e começo um sonho artificial, desses que se roteiriza acordado. imagino-me no centro das atenções, no mais genuíno e superior caso de sucesso, a grande irradiadora de admiração para todos os que um dia passaram por mim, ainda que rapidamente. o script é o mesmo por alguns dias, enquanto funciona. mudo por outro igualmente narcísico e grandiloquente em sua simplicidade quando o anterior perde o efeito. não vou revelar detalhes sobre esses sonhos, tenho para mim que se contá-los, tudo o que imaginei não vai acontecer. “nunca conte nada do que você está planejando a ninguém”, sempre recomendou minha mãe. herança de família a ideia de que são os planos silenciosos que verdadeiramente se concretizam. não vou revelar pois preciso da esperança de que aconteçam, se não para viver ao menos para dormir. adormeço quase sempre nos primeiros minutos da história, por isso não costumo ter um fim para elas, apenas introduções. meus desejos nada são além de começos. mas hoje, ao ver este conhecido na TV programada para desligar sozinha — não esperava encontrá-lo, queria apenas dormir com o barulho de um programa de auditório —, nada consegui imaginar, mesmo deitado na cama e virada para a parede descascada de meu quarto, fisicamente apto ao processo de roteirização. por isso estou aqui, sonolenta e insone, para tentar encher essas páginas do mais puro ufanismo pessoal disfarçado de desabafo e, enfim, dormir vazio de mim.
* * *
identifico-me
perdão pela indelicadeza de até o momento não me apresentar. sou D. creio tratar-se de informação suficiente diante do que vomito e que é infinitamente mais importante que minha identificação social ou o que exerço no trabalho. faço-me conhecer de fato nas horas vagas em que estou só, no resto sou apenas porta-estandarte do que não é meu. aqui, sou o que escrevo e o que transborda. e basta.
* * *
revelo-me
Tolstói escreveu Anna Kariênina a partir da tragédia de um vizinho. Bíbikov tinha como amante uma mulher cujo primeiro nome deu origem à protagonista. passados alguns anos, Bíbikov a abandonou, trocando-a pela educadora de seus filhos, com quem desejou se casar. Anna, em desespero, recolheu alguns pertences, vagou pelo campo durante três dias, até que se jogou debaixo de um trem. antes, contudo, redigiu um bilhete para Bíbikov: “você é meu assassino. seja feliz, se um assassino puder ser feliz. pode vir ver meu cadáver nos trilhos da estação de Iássenki, se quiser”. ao conhecer a história, perguntei-me em pensamento: seria capaz de jogar-me na frente de um trem por ter sido traída? a resposta aflorou rápido, sem margem para dúvida: não. mas seria capaz de jogar com prazer quem me traiu ou me rejeitou na frente deste trem. este sou eu em epiderme.
* * *
desnudo-me
uma locomotiva todos os dias estraçalha-me em vários pedaços, converte-me em uma pasta de carne, osso e sangue espremida entre a terra infértil e os dormentes. na maior parte das vezes à noite, mas acontece também pela manhã. sou recolhida cuidadosamente por mim mesmo com uma pá, depositada em um cesto e levado para casa. sempre sobra um resto entre os dormentes. invariavelmente, adormeço desfigurada para acordar recomposto, nunca igual ao que fui no dia anterior, para ser atropelada novamente. e reconheço: nunca joguei ninguém na frente de um trem. gosto de cozinhar porque observo nos alimentos as metamorfoses químicas e físicas impostas pelas forças extremas: o frio e o calor. minha metamorfose, contudo, acontece pela potência da locomotiva, trata-se da mais pura e genuína força mecânica, igualmente imposta, inescapável. cozinhar é o ato perfeito de transubstanciação, a arte mais legítima em prol da vida. já fiz muitos pratos elogiados para os amigos, mas hoje não mais. afastei-me deles por causa de meus amores. afastei-me deles por minha causa. converso com esses não mais tão amigos de vez em quando, curtimos uma ou outra coisa nas redes sociais, mas nunca mais comemos juntos. e se não comemos reunidos é porque nossos laços não são mais os mesmos. o afeto vive ao redor das mesas, tanto que é delas que queremos afastar rapidamente aqueles que não mais convém ou que decepcionaram. as mesas revelam mais intimidades do que as camas. um estranho pode conhecer a textura dos lençóis e a densidade da mola de meu colchão com apenas minutos de convivência, mas jamais sentará em minha mesa sem antes tonar-se um alvo de meus afetos, um significante com vários significados em meus relacionamentos, e isso, o que na verdade mais queria e procurava, leva tempo. aquele conhecido que vi na TV e que ainda não me deixou roteirizar para dormir deitou-se várias vezes em minha cama, mas, convidado, recusou sentar-se à minha mesa. atropelou-me como uma locomotiva fora de hora, e graças a ele tenho cacos que jamais foram recolhidos e que deveriam estar colados a mim. dedico a meu Bibikov tudo o que por ele perdi, todos os prazeres dos quais esqueci, o congelamento de mim mesma, uma panela enorme de arroz basmati e uma travessa de escondidinho de bacalhau feitos para dois e jogados no lixo semana passada, e a imensa felicidade mórbida de a partir de agora não ser mais eu para tornar-me somente e tão somente escrita, por vingança, por raiva e por inveja, por desejo de ser registro de culpa e denúncia em tintas, letras e estórias por tempo indeterminado, por querer ser sua Anna Kariênina. agora, sim, tenho certeza de que vou adormecer. e duvido que ele volte a aparecer na TV.
Leonardo Valente é escritor, jornalista e professor universitário, diretor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ. Em ficção, tem um romance publicado, Charlotte Tábua Rasa (2016), e o livro de contos Apoteose (Editora Mondrongo, 2018), obra finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2018. Entre seus originais inéditos destacam-se A procissão, vencedor do Prêmio José de Alencar 2017, e O beijo da Pombagira, romance finalista do Prêmio Rio de Literatura 2016. O conto “Criogenia do inconsciente ou manifesto pelos prazeres perdidos” é adaptação de um original de romance de mesmo nome.