Muitas coisas brotam do vazio, Teresa, a surpresa de uma culpa, a vergonha de um vício, o erro que se traça em desvios e desníveis sem que percebamos e nos toma de assalto, um rodo de asas. Eu vagava lento naquela avenida certo de estar perto do alívio que era a casa, mas, antes de finalmente encontrá-la, uma espécie de consciência que brota sem porquê me tomou num susto e puxei o freio de mão. O carro parado resfolegava sob a chuva na medida em que eu era inundado pelo constrangimento de recorrer a subterfúgios, desculpas que se querem justificativas à fraqueza de procurar no passado um refúgio absurdo ao absurdo que é minha vida.
O cigarro infernizava a ansiedade dos meus dedos no volante e, ao tempo em que me propunha razões e media consequências na esperança de domar esse sentimento, um carro surgiu sem cerimônias, devassou minhas inseguranças e sumiu, não sem antes expor o ridículo daquela situação à qual eu reincidia. Com a guarda baixa, meu corpo sem jeito no banco, o cinto de segurança apertando meu peito e o cigarro trancando a boca num ranço de nicotina, fiquei acuado pela violência da chuva e o trepidar constante do carro reprovando meu vacilo: eu estava envergonhado por ter sido flagrado no indecoro de não aceitar as coisas como são.
Maurício de Almeida é autor de Beijando Dentes (Editora Record, 2008), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2007 na categoria contos, e do romance A Instrução da Noite (Editora Rocco, 2016), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2017.
Cinthia Kriemler lê A instrução da Noite (Editora Rocco, 2016), romance de Maurício de Almeida, no link: http://bit.ly/audio_noite