rastros e poeira, de Isabella Luiz

A madrugada na casa dele era silenciosa, na minha a geladeira e o ventilador competiam para ver quem fazia mais barulho. Até a bagunça dele parecia mais organizada que meu quarto quando está arrumado.

Prateleiras sem pó, sapatos na sapateira, camisas bem dobradas, palavras bem colocadas, carinhos impecavelmente guardados. “Será que ele troca a roupa de cama quando eu saio?”. Acho que até entendo o modo de agir do rapaz, vai ver ele não quisesse se apegar ao cheiro ou à lembrança que ele trás consigo. E comecei a conferir se não havia deixado cair nenhum fio de cabelo. Nessa paranoia acabei encontrando um e já ia dar cabo dele.

— O que é que você tá fazendo?

— Nada.

Ele me pegou com a mão para fora da janela. Dizem que a lua influencia a mulher, nunca parei para ler sobre. A sombra que projetei nele me fez lembrar de outro rosto e não contive as lágrimas. Fiquei de costas e fingi observar a lua cheia enquanto me enxugava. Me surpreendeu com um abraço, afagou minhas costas e beijou a nuca. Quem sabe ele lembrou do rosto de outra pessoa também? Sábados de madrugada parecem eternos, ele andava nu pelo apartamento sem vergonha alguma, eu me cobria aqui e acolá, até que ele puxou o lençol e me olhou demoradamente. Era como se eu fosse um enfeite novo naquele espaço.

— Deixa eu me cobrir.

— Me diga o motivo.

— Tenho vergonha.

— Te acho linda, um dia te desenho e emolduro.

Cheirou meu cabelo, enrolou nos dedos e me puxou pra ele. Durante o beijo abri os olhos, dei de cara com os dele. Não era estranho a forma que fazíamos, não havia estranhamentos, só uma assustadora intimidade que cresceu como erva daninha em um terreno abandonado. Trocamos segredos também por palavras. Mas pra mim não passaria disso e para ele também. A honestidade bruta era o que mais gostava, depois do sexo.

— Seus olhos estão vermelhos.

— Sou alérgica à poeira.

Dúvidas tiradas: levantou-se para pegar algo e limpar a cabeceira da cama. Assoei o nariz na fronha do travesseiro, bati os sapatos e deixei um fio escondido debaixo do lençol de elástico. Se não for pra deixar um pouco de mim onde passo me recuso a permanecer.

Saí enquanto ele procurava um pano úmido, eu completamente seca.

Isabella Luiz é roteirista, escritora e ilustradora. Fotografa e mistura tudo com poesia. Conheça mais do trabalho em trabalho: medium.com/@isabellaluiz