brilhos, brocados, copos de cristal
Brilhos, brocados, copos de cristal
pirilampos nos cabelos
Desenterrais-me o olhar
das vossas cabeleiras com pérolas
Junto à porta ainda sinto o sufoco
a carruagem desenfreada, rua fora
o baile dos vagalumes
nas cabeças
A noite avança
Cofiam-se bigodes fartos, já sem políticas cartolas
Trincha-se
leitão luzidio, morto na travessa
Há toda uma armação
uma dobradiça que vos acompanha
para que vos senteis, elegantes, à mesa
O animal fumega
A violeta de Parma exala dos colos
! Ó femmes fatales!
(Comentais, entre risos, que Georges Sand prefere
ouvir Chopin com patchouli)
Não ouvis, lá fora, os acordes do povo sufocado
As execuções carecem de âmbar ou baunilha
Cheiram a carne assada. devoram
a liberdade absoluta.
electrifico-me
Electrifico-me
nos passos na curva incerta
Choque entre agulhas — veias —
— caminho de ferro rumo a ti
Estremeço onde o sono me tem
na paragem
da ausência
Depois acordo dentro da vitrine
Século — tentáculo cujas pernas
se lançam para o exterior
em surto de ramos luminosos
onde as aves caem
electrocutadas
Grito
Eco — sede — ferida
nesse teu voo alucinado
Vens em sonora
água em derrame
sobre o fumo
Voas sobre a fuligem deste tempo
onde te perco.
terceira margem
Naquela tarde saía, pela terceira vez,
com a terceira margem suspensa nos rios que deixava.
Era um golpe que se revelava a mais frágil presença
entre os maxilares,
cansados de articular palavras defensivas.
Lembrava-me da ponte atravessada
numa infância onde o medo ficava
a uma altura considerável.
Teria então gostado que Bird Millman me visse
a sorrir, tão descansadamente,
diante da fúria do veículo.
Não via o abismo, nem a morte.
Via vida:
o Sol pulsava com os seus mares ardentes,
a cidade estalava, férrea, debaixo dos pés descalços.
Aí se refez a intacta certeza
de haver em mim lugares habitados
por alados membros
sem vertigens.
tombam as horas
Tombam as horas no soalho, ecoam os minutos no ouvido
e não adormeço
Há uma noite que me chama atormentada
Um vazio que se reproduz, já biológico
neste frio, neste embarque
Tenho alguns dedos sem pinta de sangue
porque a chuva do meu pânico
é não saber quando vai parar este que bate
Congela-me, pois, num saco de plástico
ó tempo pulsado na escrita brusca
ou no estampido de um amor que se extinguiu
uma vez aceso no explodido negro
Desata-me de ti, valida o bilhete sem volta
Oblitera a minha identidade que desconhece
outra forma menos abrupta
de me soltares
Assim, os acontecimentos vão passando
com menos gravidade do que antes
O aço estala na gare
Há tanto gelo.
Marília Miranda Lopes nasceu em Portugal, no Porto. Dedica-se ao ensino da língua portuguesa em escolas públicas secundárias e à composição de canções que interpreta em quarteto. Escreveu, até ao momento, Poesis em Oásis (Ed. Autor, 1990), Framboesas (Teatro para a infância, Ed. Autor, 1996), Geometria (Poesia, Ed. Autor, 1998); Templo (Poesia, Colecção Tellus, nº10; 2003); Duendouro — Era uma vez um rio… (Teatro — Edições Afrontamento — livro incluído no Plano Nacional de Leitura e levado à cena na região Norte — 2007), Castas (Poesia, Edições Cadernos Q de Vien, Galiza, Espanha, 2012) e Victorianas (Poesia, Edições Labirinto de Letras, 2015). Tem participado, com poesia e prosa, em revistas literárias e antologias.