I.
acredito que a esquina
é uma dobra no pensamento
e as rugas escamas de peixe
nubladas pela água suja do aquário
o convite pro cinema um devaneio
de quem trança as pernas
invertendo as placas dos carros
o tempo alfabeto de impossibilidades
num fluxo de rio coberto pelo asfalto
chovem chaminés das fábricas
notícias de amores
de pedra-pomes
dissolvidos nas banheiras
dos motéis da ricardo jafet
II.
não foi o devaneio
das águas breves
que pousaram na calha
da avenida
madrugada
luzes míopes refletidas
na lataria dos carros
incêndio nos olhos trágicos
à beira da ponte
sirenes anunciam chacinas
e queimam asfalto até o IML
III.
que a chuva lave
aquilo que vela
fotos reveladas
nos silos de chumbo
depois da quarta camada de areia
desaparece o traço do navio
a lembrança da imagem
que insiste em refazer as margens:
dias expulsos do calendário
IV.
na São Bento, os fantasmas
entre a ferrugem da marquise
e os passos enviesados
rente à escadaria
o senhor de panamá
pisa na água suja e
lamenta a loja fechada
1935, El Sombrero
finda um tempo
arabesco, espelho mofado
o relógio de ponta-cabeça
em ato contínuo, silêncio
tecido nessa noite de garoa
V.
mudei de calçada:
a esquina é a
dobra da rua,
uma rasura,
traço ao acaso
asfalto que apressa os passos
de um calendário magro
um tropeço, engano
blefe de baralho fajuto,
uma cuspida
que volta ao rosto
um corpo estático
pendurado na
escadaria da 23 de maio
Diniz Gonçalves Júnior (paulistano, 47 anos) é autor de Decalques e Concha Acústica, em parceria com o ilustrador Marcelo Rampazzo.