mataram o narrador, de Jorge Ialanji Filholini

Mataram o meu personagem. Nem passou da página trinta. O arquivo na lixeira. Nossa relação não se prolongou. Decisivo. Trinta e três facadas. Morreu. Estirado no chão da página. Mudar de ideia. Trocar de enredo. Eu, o narrador, morri junto com o meu personagem.

Não há consulta comigo. Fazem o que bem querem. Chamam-me para qualquer tipo de narrativa. Mas me descartam sem preocupação.

Escritores, um apelo. Parem de me maltratar. Ou me utilizem até o fim ou me falem antes quando devo sair de cena. Não prejudiquem meu mísero tempo. Narrar não é fácil, não. Tem quem tente. Use e abuse da minha narração. Não facilito. Querem me usar nos clássicos. Nos contemporâneos. Até nos anúncios de fraldas. Narra direito ou abandono o texto.

O mundo literário agora ficou conciso. Eu gostava do Paulo. Personagem sensato. Sabia como se portar em uma boa história. O seu autor controlava precisamente atrama. Desenvolvia ambientes, obstáculos. Consertava o enredo. Até que Paulo morre. Com aquelas trinta e três facadas. Não consegui me apegar a ele. Nem ele a mim. Personagens descartáveis. Estão ali para encher linguiça. Aumentar a página. Engrossar o livro. Eu nunca cheguei ao epílogo.

Já fui ladrão. Selvagem. Cavaleiro. Cruzado. Soldado. Aviador. Cangaceiro. Jagunço. Judas Iscariotes. Estão lá. Todos narrados por mim. Bibliotecas imensas com as edições mais raras. Já fiz freelas em contos de fadas e algumas fábulas. Sabe, aquele Era uma vez…? Uma merda. A moral sem sentido e preguiçosa. Nenhum deles tem meu nome. Safados.

Tem escritor por aí que junta uma pilha de livros do lado do computador para roubar parágrafos dos clássicos. Os mortos não podem se defender, não é mesmo? Odisseia e Moby Dick são os mais consultados. O narrador de Vidas Secas. O coitado, já caduco, com conversas sempre circulares, protestou que tinha uma Baleia parecida com a dele em um outro livro. Não me prolonguei. Eu não era o narrador acusado. Em histórias dos outros não se mete a sua narração.

Quer saber? Eu não gosto de literatura. Prefiro falar de filmes. Qual o melhor longa de todos os tempos? Lógico que é O Poderoso Chefão. Parte Um. Irretocável. Brando no auge. Pacino novinho, mas já com um apelo dramático fabuloso. Isso que é narrativa. Em tela se vê toda a literatura cinematográfica. Se assim posso dizer. Foda-se, aqui eu posso. Assumo. Debruço em qualquer assunto. O enredo que eu decidir desenvolver. Envolver. Correr nesta página branca de pixels. Porque escrever à mão ninguém mais quer. Dói o punho. Tadinhos. Vovô me contava histórias belas das penas molhadas nas tintas. Da sabedoria de traçar as letras. Contar uma boa narrativa na pele de carneiro.

Apego-me fácil aos brasileiros. Troco um Tolstói por cinco autores brasileiros. Não suporto os russos. Os britânicos redondinhos demais. Americanos sem sentido. Orientais, filosofia furada. Portugueses com seus objectos e factos. Chatice só. Sou prático, se me deixarem, narro tudo com facilidade. Sem rodeios. Blábláblá demais. Do jeito que você quiser. Como o mercado exigir.

Nem vem me chamar para escrever o seu roteiro. Onde já se viu, roteiro não é literatura. Cena 1, cena 2, cena 3. Me poupe. E tem outra, agora que descobriram o Dicionário analógico da língua portuguesa, haja ideias afins para qualquer frase ou mesmo neste parágrafo. Ai, uma merda, bosta, fezes, besteira, bobagem, cocô, esterco, estrume, merda, porcaria, excremento.

E aquela mania de autoficção? Não tem autor que se preze para narrar uma história a partir de sua vivência. Deselegante. E jura de pés juntos, na mesa literária, feira, festivais e eventos que aquela narrativa não é sobre ele. Mas que o enredo é interessante. Ora, é sobre quem? A minha que não é. Imagina se me deixarem escrever. Vai ter escritor abandonando a área.

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Página 43.

O tiro.

A cabeça do narrador no teclado do computador.

| conto do livro Somos mais limpos pela manhã (Selo Demônio Negro, 2016). |

Jorge Ialanji Filholini é escritor, produtor cultural e editor do site cultural Livre Opinião — Ideias em Debate. Autor do livro Somos mais limpos pela manhã, lançado em 2016 pelo Selo Demônio Negro. A obra foi finalista do 59º Prêmio Jabuti, na categoria Contos e Crônicas.