girassóis (Ou Van Gogh, a musa, o suicídio amarelo), de Silvia Simone Anspach

Acordou tarde. Ou cedo. Nem sabia mais. Havia muito tempo, o mundo — seu mundo — havia sido devorado pela treva. Não se lembrava mais do momento em que seu coração anoitecera, entumecera, congelara, envelhecera. Nem de como, com ele, se ensandecera a trajetória de seu sangue — agora turvo e torvo, arriscando-se cegamente por um labirinto de artérias e veias. Teia de um emaranhado desígnio, desenho ou destino traçado por um Criador oculto no nada que a abraçava com seus tentáculos de desesperança e mesmice. Abraçara. Que saudade lhe trouxe esta palavra, do calor e da cor que precedera a frieza negra de agora. Quisera dizer abrasara. Quisera reviver a paixão. Ansiava pelo mundo lá fora, a ágora, a água saciando a sede, o sonho e o sono.

Não. Não era bem isso. A escuridão lhe nublava os pensamentos. Na verdade, a saudade que hoje de repente sentia era outra. Saudade de coisas que nunca vira nem vivera. Saudade de um prelúdio que Debussy nunca escrevera. Saudade de uma pessoa que Fernando Pessoa quereria ter encontrado na dispersão de suas tantas pessoas. Saudade de florestas precedentes ao verde, à fruta, à fome, ao amor, à cor. Saudade de prazeres frustrados antes de serem fruídos, de sucos não sorvidos, de seios não sugados. De círculos quadrados, de paraísos perdidos e achados. Saudade de nunca ter nascido, de já ter morrido e de saber o que havia do “outro lado”. Saudade de ver as nuvens verterem chuva até esvaziarem o céu. Saudade de desertificar e dessalinizar o mar. Saudade de inverter — de um mar que fosse uma abóbada cheia de peixes e de um céu cheio de estrelas que se estendesse como relva azul e luminescente a seus pés. Saudade de pisar os astros. De ser ou ter sido Zoroastro. Saudade do acaso ganhando contornos. Saudade do fim, do ocaso. Saudade do sem fim, da eternidade. Saudade da saudade. Saudade do sol e do céu. Saudade de Deus. Vértice e vórtex. Deus abissal: vertigem.

Em sua antevisão do abismo, em sua saudade de comunhão cósmica, imaginara a saudade de viver em sua própria carne e alma — soma e anima — os movimentos de rotação e translação da Terra. E, em sua pressa de viver tudo tão de repente, intensamente, passara a incorporar e encarnar a aceleração deste movimento. Pensou num caleidoscópio. E em como seria bom estar girando dentro dele, para ser invadida pelas cores de que nem mais se lembrava. Consubstanciando seus desejos, viu-se — ou sentiu-se — imediatamente rodando e brilhando como num túnel furta-cor, arco-íris de cacos mutante e cortante. As tonalidades e matizes, ela ainda não via. Mas uma delas, impressa num dos pequenos fragmentos de vidro que com ela giravam estonteantemente, lhe tocou, feriu e cortou a orelha. Sempre rodando, ela sentiu o líquido, cuja cor suspeitava, mas não via, escorrer e pintar-lhe o rosto.

Sua saudade de Sol parecia impelir os movimentos giratórios de seu corpo e espírito — soma e pneuma — para fora do túnel. Será que este caleidoscópio que sua saudade inventara era o túnel que as pessoas dizem atravessar em direção à morte?

Foi então que, como Paulo a caminho de Damasco, ela abriu os olhos e voltou a ver. A inundação de luz absoluta que se lhe prometia lá fora fizera cair de sua retina algo semelhante a escamas. Sim — constatou. Ela estava indo diretamente em direção ao Sol. A voz milenar da Sabedoria a alertava para não prosseguir:

Apareceu-lhe o anjo do Senhor numa chama de fogo, do meio de uma sarça. Moisés notou que a sarça estava em chamas, mas não se consumia, e disse: “Vou aproximar-me desta visão extraordinária, para ver por que a sarça não se consome”. O Senhor viu que Moisés se aproximava (…) e chamou-o do meio da sarça, dizendo: “Moisés! Moisés!” Ele respondeu: “Aqui estou”. E Deus disse: “Não te aproximes!”.

Fogo que incendeia, luz absoluta: Ela fechou os olhos. E, desobedecendo a ordem divina, ofereceu-se ao Sol em sacrifício.

* * *

Em seu estúdio, Van Gogh contemplava a tela vazia. Da orelha enfaixada, corriam gotas de mel, cacos caleidoscópicos de cor, raios de sol. Ardendo de paixão e reverência, mergulhou o pincel na tinta amarela e capturou o movimento giratório de uma forma de um amarelo incandescente que incendiava o caleidoscópio de sua imaginação. Ou seria insolação? Pingou-a, ainda viva e girando, sobre a tela. Captou outra e outra. Plantou doze destas formas rodantes e douradas que ameaçavam incendiar a tela e os fantasmas de sua mente criativa. Para elas, criou um vaso — cálice que apresentou a Deus e aos homens em eterna oferenda. Batizou solenemente sua obra: Doze Girassóis.

Agradeceu pelo sacrifício de sua musa. Afinal, a ela não restara alternativa: O destino dos girassóis é buscar a luz, ainda que isso lhes possa custar a vida.

Tirando seu chapéu de palha amarela e a bandagem que protegia sua orelha amarela, dirigiu-se obedientemente ao Sol amarelo.

“Moisés! Moisés! Não te aproximes!”

Saudade de Deus. Deus que é fogo que queima. Chama proibida. Amarela.

Van Gogh pensou em Ícaro, as asas derretidas ao calor do sol. E soube que seria inevitável: Desobedecendo o alerta divino, atravessou a interdita barreira. E foi de encontro ao Sol amarelo.

* * *

De pé, o espectador admira hoje o quadro sobre a parede do museu: Doze Girassóis — ele lê. E nem suspeita que aquelas flores carregam o segredo giratório e cortante da musa de Van Gogh, seu sacrifício ao Deus-Sol.

Sente sua própria orelha arder — um ardor amarelo. Com espanto, percebe que escorrem dela gotas de sangue. Através da janela, vê brilhar o sol — única testemunha do suicídio amarelo de Van Gogh. Um aroma de flores inunda e transcende o espaço e o tempo. Inala o perfume, sente o dourado da luz sobre a pele. Respira fundo, sorri. E ajoelha-se — frente à obra prima florida — em reverência amarela.

| conto do livro A Última Esquina do Tempo (Scortecci, 2018). |

Sílvia Simone Anspach concluiu o doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 1987, com bolsa Fulbright para visiting scholar and faculty na University of North Carolina. Mestre em Linguística Aplicada na University of Reading em 1981, Sílvia tem formação em Psicanálise e especialização em Psicologia Analítica. Foi professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) de 1981 a 2007 e atualmente leciona e orienta trabalhos científicos no curso de Pós Graduação em Arte Integrativa do Centro de Estudos Universais (Anhembi-Laureate Unversity). Recebeu diversos prêmios e/ou homenagens, é autora de livros e no presente momento trabalha no eixo Brasil-Estados Unidos, atuando em comissões julgadoras e como palestrante em assuntos de Criação Literária e Post Colonial Literature.