é tudo sal, plâncton, areia e bicho morto, de Maria Fernanda Elias Maglio

“No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.”
(Sophia de Mello BreynerAndresen)

Deu as últimas instruções antes de cair na água: o Montai por último, ninguém fica pra trás. Entrem com calma, passo de gigante, igual a gente treinou na piscina. Chequem lastro, regulador, colete. Um de cada vez, na ordem combinada. Cecília, Augusto, Jonas, Marcão, Ester e Denis. Depois que todo mundo estiver dentro, é a vez do Montai.

No fundo do barco, Montai balançou a cabeça em concordância, ao mesmo tempo em que levantava o polegar direito.

André enfiou o regulador na boca, sentindo latejar o dente. Caralho, devia ter ido ao dentista de uma vez.

Deu o passo de gigante e, na água, tirou o regulador para encorajar os alunos. Um a um foram entrando. Jonas relutou, queria desistir, esperar no barco.

— Meu, seu nome vem da porra da história com a baleia, você é do mar, cara. É igual a gente fez na piscina. Passo grande, olhando pra frente, não pensa em nada, só vem.

Jonas entrou. Depois Marcão, Ester, Denis, por último Montai.

— Vamos descer devagar, sem respirar rápido, vocês têm ar de sobra. Cada um de olho na sua dupla. Se alguém precisar subir, sem desespero. Polegar pra cima e eu ou o Montai vamos até aí.

Abocanhou o regulador e deixou escapar um ai quando a borracha encostou no dente inflamado. Um atobá afundava o bico na água e saía com um pequeno polvo. Quis tirar o bocal e chamar a atenção dos outros para o que acabava de ver. Lembrou do dente, desistiu. A ave agora soltava o polvo e voava. Cada quase mergulhador preocupado com o equipamento, a justeza do lastro, a quantidade de oxigênio no cilindro. Montai ajudava Ester com a máscara: cuspia no visor, esfregava as pontas dos dedos na lente e devolvia. Ninguém viu o atobá.

Sinalizou ok para o grupo, juntando polegar com indicador e começou a descer. Fechava os olhos nos primeiros minutos de descida, mesmo que estivesse com alunos. Gostava do silêncio do mar raso, morno de sol. Quando abriu os olhos, não viu sua dupla, girou o corpo para a direita e localizou. Fez ok com a mão e Denis respondeu da mesma forma. Desceu um pouco mais e o polvo ferido flutuava. Um filete de sangue azul esguichando de um dos tentáculos. Morto? Contrariando os princípios de respeito e não interação, tocou com a ponta do dedo. O polvo piscou três vezes. Os olhos tinham o brilho baço de quem vai morrer. Oito tentáculos: sete se agitando, um imóvel. Denis distraído com um cardume de mariquitas. Podia ter mostrado ao aluno o animal ferido, os tentáculos vivos, o morto, a luta primitiva de-vida-de-morte. Não mostrou.

Passaram por barracudas enfezadas, salemas riscadas de laranja, peixe-palhaço, tartaruga-verde, um baiacu inflado, cardumes de sargentinho, peixe-agulha, arraia chita, dois ouriços (um preto e um azul), uma estrela do mar vermelha e uma moreia de boca de demônio.

Trinta e cinco minutos e era hora de subir. Levantou o polegar para cada um do grupo. Gostava da praticidade dos mergulhos rasos, quinze metros de distância entre a terra do fundo e a borda de fora. Quando trabalhava na plataforma, o que incomodava não era o escuro, o frio de nevar os ossos, as turbinas imensas, as ferramentas, tubulações gigantes. Eram as milhares de toneladas de água sobre a cabeça, duzentos e cinquenta metros de profundidade e o peso do mundo sobrecarregando o corpo. Entrava nas turbinas de olhos fechados (ainda que os abrisse, não veria nada além de noite). A vida ali era escura e precária. Tudo na pressa de morte.

Mais um ai quando tirou o regulador. Amanhã sem falta marca dentista, arranca a porra do dente de uma vez.

— E aí, pessoal, quem está se sentindo mergulhador? Gostaram?

Todos falavam ao mesmo tempo, a euforia do primeiro mergulho: viu aquele peixe palhaço? A arraia passou pertinho de mim, tive até medo do ferrão, era chita? Era chita sim, as pintas. E o baiacu? Caramba, igual uma bexiga. Nossa, e a moreia? Não acredito que você não viu a moreia, passou raspando o Montai. E o ouriço azul? Era azul, deu pra ver.

André entregava os certificados, chamando os nomes. Tinha despido a parte de cima do corpo. No peito, tubarão-tigre e submarino. Nas costas, cavalo-marinho, escafandro e estrela do mar. Da cintura para baixo continuava vestido de mergulhador. Ninguém via a tatuagem na coxa esquerda: um triângulo equilátero pintado de preto.

Um dos alunos abriu uma caixa de bis. Pouquíssimas coisas na vida eram melhores que chocolate depois de mergulho. André fez que não com a cabeça, em respeito ao dente.

O barco aporta, cada aluno pega a mochila e desce. André, Montai e o marinheiro ficam mais um pouco. Esvaziam coletes, estendem roupas encharcadas, enfileiram cilindros.

— E aí, André, que achou do grupo?

— Sei lá, Montai, esses caras acham que mergulho é adrenalina, cair na água e ficar olhando peixe. Mergulho é outra coisa.

O marinheiro raspa as sobras dos pratos no mar: cascas de banana, restos de pão com maionese, migalhas de bolachas, sementes de maçãs, flocos melados de granola. Centenas de peixes se aproximam do barco para comer: pargos, dourados-do-mar, corvinas, anchovas, cavalas e tainhas.

— Topa um mergulho agora, André? Rola, Baiano?

O marinheiro franze a boca e levanta os dois ombros, enquanto termina de enrolar uma corda.

— Tá meio mexido, mas dá pra ir. Agora é bom no Meros. Só falar.

— Bora, André?

— Cara, tô com um dente aqui me matando, bichado até o miolo, só do bocal encostar tô vendo estrela.

— Pra fechar o dia. Uma hora pra ir e voltar. Não dá, Baiano?

— Uma hora não digo. Hora e meia.

— Bora, André?

O dente pulsava como um coração. Doíam todos. E também o pescoço, a orelha direita, a cabeça e os cabelos. Desceu de olhos fechados, sem aluno nenhum. Montai não fechava os olhos nunca. E se um tigre aparecer bem na sua frente, hein, André? Vai perder? Aqui não tem tigre, Montai, no máximo um limão ou lixa, que a gente já viu trocentas vezes. Vai saber se não tem tigre, branco, o mar não tem cerca, André.

Abriu os olhos e Montai estava com a mão direita espalmada sobre a cabeça, sinalizando tubarão. Mesmo com o rosto escondido por máscara e regulador sabia que o amigo estava rindo. Devolveu a brincadeira com um fuck. Não riu. O dente doía demais.

André tornou a fechar os olhos, enquanto desciam mais um pouco. Quando abriu, não era Montai quem estava a seu lado, mas o polvo ferido. O tentáculo machucado ainda esguichava sangue. Nove quilômetros separavam o primeiro ponto de mergulho de onde estavam agora. Só o sangue era vivo: azul e luminoso, desenhando serpente no mar. O polvo estava morto. Agonizou nove quilômetros para morrer aqui? Queria piscar uma última vez os olhos baços? Ou nadou seis quilômetros, o sangue jorrando mar afora, mar adentro, o corpo-cabeça derramado sobre os pés, outros três quilômetros de correnteza deslocando o cadáver. Segurou o corpo do polvo com a mão esquerda e com a direita fez um afago desajeitado na cabeça mole. Teria beijado, não fosse o regulador (e se o dente não doesse tanto). Soltou o animal sabendo que não era mais um polvo. O que morre no mar, se torna mar. É tudo sal, plâncton, areia e bicho morto.

Não viu Montai. Estava a três metros abaixo, dedicado a um cardume de agulhinhas, quem sabe um peixe-pedra, uma moreia de fita, um cavalo-marinho fluorescente. O mar avançava na indiferença da morte do pequeno polvo, dissolvendo massa visceral, três corações, ventosas, brânquias e sangue azul.

Um pargo passou do seu lado direito. Era tão grande que nem parecia pargo, devia ter mais de dois metros. A porção de água deslocada pelo peixe provocou uma leve correnteza. Algas mortas e pedrinhas minúsculas sacudiram. Uma pontada no dente. Corrente fria, corrente morna, bolhas de ar saindo da sua boca, da boca de todos os peixes, de todos os polvos, lontras, anêmonas, bolachas do mar, tartarugas-pente. Tudo vivo, tudo na pressa de morte.

Não via Montai. Não estava a três metros abaixo, nem acima, nem metido em caverna, naufrágio, investigando o mar à procura de tubarão-tigre, branco, martelo, o mar não tem cerca, André. Talvez Montai não estivesse nunca, era só ele, o mar, os bichos todos (vivos e mortos), o dente latejando. Não suportava mais o dente. Arrancou o regulador com um puxão. Esperou que a água salgada invadisse os pulmões. Não era morte, o ar de que necessitava estava na água. Arregaçou a manga da roupa de mergulho e não se surpreendeu com as escamas cobrindo a pele tingida de sol, a cicatriz no pulso, a mandala tribal do antebraço. Desvencilhou-se do lastro sabendo que não precisava dele para permanecer no fundo. Despiu-se das nadadeiras e da roupa, tendo dificuldades de passar os pés pela justeza do macacão. Tirou sunga e máscara. Arrancou o dente dolorido usando o indicador e o polegar (o mesmo polegar que tantas vezes sinalizou necessidade de subir e de descer, mar acima, mar abaixo). Não precisava mais do dente. De nenhum deles. Arrancou todos, os caninos por último. Os dentes levados pela correnteza nadando com linguados, tampinhas de garrafa, lascas de conchas e caravelas translúcidas. Da gengiva magoada rebentava sangue: azul.

Maria Fernanda Elias Maglio nasceu em Cajuru e mora em São Paulo há 20 anos. É Defensora Pública do Estado de São Paulo e atua na defesa das pessoas pobres que estão cumprindo pena. Sempre foi apaixonada por literatura e há alguns anos escreve suas próprias histórias. Foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura em 2016 e 2017. Em dezembro de 2017 publicou seu primeiro livro, Enfim, imperatriz, pela Editora Patuá.