insana honestidade noturna, de Glória Tavares

Era muito tarde da noite. Vitória devia ter uns quatro ou cinco anos quando acordou com os gritos violentos de seu pai: “Meu irmão é honesto e o seu não é, minha mãe é honesta e a sua não é, meu pai é honesto e o seu não é, eu sou honesto e você não é e… e eu estou pensando em pegar meu facão e cortar o seu pescoço.” Esta última afirmação ameaçadora fez Vitória tremer de medo. O lençol parecia se mexer com seu tremor. Pânico. Pavor. Insegurança. Respiração ofegante.

É incrível o que um ser humano consegue guardar na memória desde os tempos de criança. Hoje com quarenta anos, ela não lembra o desfecho da noite, não lembra o que aconteceu depois, mas ela jamais esqueceu aqueles gritos noturnos e insanos rasgando violentamente o silêncio de seu sono infantil. Aqueles gritos que os vizinhos certamente ouviram. Sua mãe não havia perdido o pescoço, ainda estava viva até hoje. Seu pai já havia feito a passagem. Viveu bebendo, morreu de beber.

Um pai alcoólatra deixa de cumprir muitas promessas. Chega atrasado demais para levar os filhos aos aniversários, quebra a televisão preto e branco, quebra o rádio no corredor, destrata os amigos das crianças, expulsa visitas de casa. Mas uma promessa aquele pai certamente cumpriu quando disse que só deixaria de beber quando morresse. O casamento teve um fim décadas antes da partida de seu pai.

Vitória lembrava que sua mãe amava plantas, flores e mesmo não havendo nada de sofisticado em sua casa, as plantas estavam em todo lugar. Seu pai sóbrio cuidava das plantas quando não estava trabalhando. Certo dia, bêbado e vestido de fúria, pegou o facão vermelho e cortou todas as plantas de casa, do quintal e do jardim. Não, ele nunca havia cortado o pescoço de sua mãe. Porém, naquele dia havia definitivamente cortado o seu coração. Aquele facão vermelho que ele sóbrio usava para podar as plantas e deixá-las mais belas. Aquele facão vermelho que ele sóbrio usava para cortar cana. Havia plantação de cana perto do muro do quintal e era tão bom sentar na grama e chupar aquela cana. Era muito doce. Havia cana também nos jogos do Ceará no Castelão.

Nunca havia usado de violência física contra sua família. A violência era emocional, verbal. A violência física em si era contra coisas e plantas. Em casa de pai alcoólatra há sempre uma aflição no ar. As mãos estremecem ao botar a mesa, ao lavar a louça. Os olhos são tensos. Não se pode receber os amigos das crianças em casa, pois a qualquer momento, o pai pode chegar em condições vexaminosas. O pai sóbrio era amoroso e cômico. Pedia beijos e cheiros, contava piadas. A mãe aflita fazia sinal com os olhos para que Vitória o beijasse, mas isso jamais aconteceu. Várias noites, quando Vitória beijava sua mãe na cama antes de dormir, sua mãe pedia para que os beijos não fossem sonoros, pois assim o pai não ouviria e não ficaria triste porque a filha só beijava sua mãe. A mãe temia que fosse mais um motivo para brigas em momentos de álcool.

Um dia Vitória queria muito sair de casa para brincar na calçada e decidiu pular o muro para evitar o portão. Seu pai estava a beber na área que dava vista para o portão. Seu pai a avistou e indagou:

— Por que você pulou o muro?

— Porque eu quis, mentiu Vitória.

— Fale a verdade, pediu sua mãe.

— Porque eu quis, repetiu a filha em pânico.

E o pai saiu com um ar vitorioso olhando para sua mãe. O silêncio de seu pai claramente falava à sua mãe “ela pulou porque quis, não por minha causa, não por medo de mim.” Assim coexistiam os gritos, o silêncio, a aflição, o doce da cana e o medo. Uma família vivendo sobre uma areia movediça. A força daquela areia era o álcool. A mãe era uma espécie de árvore à beira da areia onde os quatro filhos se agarravam.

Há quem diga que o perdão e o esquecimento devem ser irmãos bem unidos. Há uma intrínseca relação entre perdoar e esquecer. Em inglês “forgive and forget”. Perdoe e esqueça. Naquela noite, dirigindo de volta para casa, Vitória se viu soterrada em fortes lembranças. Tantas memórias que estavam guardadas. Não vivia pensando nelas. Raramente escolhia pensar nelas. Era uma mulher alegre. Na maioria das vezes, fazia jus a seu nome. Mas as memórias estavam lá disponíveis para resgate. Atormentada por meteóricas lembranças familiares em intensas colisões com sua mente, concluiu que tinha que fazer um pedido a Deus. Era um pedido tão forte que talvez até ela tenha pensado alto ao fazê-lo. Disso ela não lembra. Mas é certo que ela falou com Deus em pensamento e disse: “Meu Deus, fazei com que o esquecimento não seja a única evidência válida do perdão”.

Glória Tavares é professora do Departamento de Estudos de Língua Inglesa, suas literaturas e tradução da Universidade Federal do Ceará, tem mestrado e doutorado em Letras — Inglês e Literatura Correspondente pela Universidade Federal de Santa Catarina. Durante o terceiro ano de doutorado foi pesquisadora visitante na Universidade de Auckland, Nova Zelândia. Amante da fotografia e da escrita, considera as duas como dois olhos de uma mesma face.