Há tempos quero escrever sobre o espaço inbox do Facebook, por perceber que ali se desenvolve uma outra rede social, de fios mais finos e retorcidos, que se desdobram em outras teias menores, cheias de nós, sujeitas — em igual proporção — a acertos, erros e mal-entendidos. Tenho notícias de casamentos iniciados naquele espaço tão incômodo quanto prático, de términos de relações virtuais e reais, de discussões e arengas que poriam no bolso as Histórias das Mil e Uma Noites. É uma rede subterrânea aparentemente invisível, mas que tem vida própria e deve ser levada a sério.
Nada contra o espaço em si — que tem me permitido vender exemplares de livros, receber convites para palestras, oficinas, lançamentos e atividades artísticas de modo geral, além da solicitação de entrevistas, prefácios, contos e crônicas de pessoas e revistas literárias eletrônicas e impressas.
Ao lado do importante papel que desempenha na vida literária, que é o principal motivo que me leva a utilizar o Facebook, o inbox serve também para a troca de notícias rápidas com amigos queridos, convites em cima da hora, troca de informações sobre livros.
Mas o que importa mesmo, neste texto, é o uso daquele espaço para outros tipos de atividades, pertencentes, digamos, ao mundo subjetivo. Para ilustrar o tema, passo a narrar um diálogo pra lá de improvável que tive há alguns dias com um poeta estrangeiro.
Inicialmente, recebi um pedido de mensagem — que ocorre quando o ser não pertence à nossa lista de amigos — de um estrangeiro que escreve mais ou menos bem, dizendo que queria me conhecer, visando estabelecer uma grande amizade. Li várias vezes a mensagem, que nada tinha de invasiva ou perigosa, pelo menos explicitamente. O que me levantou suspeitas foi a figura aparentemente inocente de uma rosinha vermelha, no final do pequeno texto. Estranhei a vermelhidão toda. Rosa vermelha, numa mensagem inicial?
Dei um desconto pelo fato de ele ter outra cultura. Afinal, escreve em outro idioma. Que eu domino, mas não é o meu, e isso sempre pode gerar empecilhos à comunicação. Mesmo assim, não respondi. Rosa por rosa, breguice por breguice, a gente encontra aqui mesmo. Ocupada, fazendo vários trabalhos ao mesmo tempo, dei o assunto por encerrado e me esqueci completamente do ser que se apresentou como poeta.
Três dias depois ele enviou nova mensagem, muito semelhante a primeira. E tome mais rosinha vermelha, com folha, cabinho e tudo. Li e reli as poucas frases — o segundo texto foi mais curto — e novamente não respondi.
Passados alguns dias, eis que chega uma terceira mensagem, num tom mais contundente, dessa vez acompanhada de pedido de amizade. Achei que era insistência demais — não dá pra dar tantos pontapés na sorte — e resolvi reconsiderar, aceitando logo a solicitação e iniciando uma resposta.
Ocorre que o cidadão estava online e logo deu o ar de sua graça. Perguntei-lhe como havia me descoberto na rede social. Por acaso, respondeu. (A menção ao acaso me pôs de cabelo em pé). Por acaso como, perguntei? Ah, uma coincidência, disse. Achei a resposta surreal e pedi que me contasse quem era ele. Sou estrangeiro, nascido no país X e morando em Y. O que faz aí? Quis saber. Trabalho com vendas, contestou vagamente. Vendas? Ah, sim, vendas. Sei. Além disso — continuou, com ironia mal contida — sou divorciado há X anos, não fumo há 17, não bebo há 12, não tomo café há dez, não jogo desde criancinha. E sou um tipo antifacebuquiano. Satisfeita? O tom desdenhoso e a referência ao cigarro me deram raiva, sou fumante. Pois eu fumo, tomo café várias vezes ao dia, não bebo álcool e não sei jogar pôquer, respondi.
Gosta de poesia? Sou poeta por hobby, um humilde poeta de província. Você é romântica? Mora sozinha?
Danou-se, pensei. Não vou conseguir conversar com essa criatura. Comentei como detesto a palavra “humilde”, quando se trata de arte. Nenhuma arte é humilde, disse. Por que humilde? Sem conseguir conter a irritação, ele fez a defesa da humildade, de cabo a rabo. Humildade é palavra digna, escreveu. Sim, disse eu, mas não combina com arte, não casa, não dá jogo, não dá liga.
Deixei de lado o tema da humildade e passei ao gosto pela poesia. Para descobrir se ele de fato sabia quem eu era, comentei que sou escritora. A criatura não passou recibo algum. (Se não sabe, pensei, é porque nunca buscou informações a meu respeito e deve ter enviado a mesma mensagem a dezenas de mulheres, indiscriminadamente).
Decidi perguntar de maneira direta a quantas mulheres aquele texto tinha sido mandado. Ele negaceou, de maus modos, mas não explicou o motivo de tê-lo enviado a mim. Aflita com o caminho que a tentativa de conversa tomava, tentei pôr panos quentes, buscar neutralidade, indagando como é o país, que não conheço, e a cidade onde ele mora, esforço que se revelou absolutamente inútil. Voltou à carga: pensei que, sendo professora, poderíamos ter uma conversa de alto nível, mas vejo que me enganei. Ainda não falou nada de si, e me fez um interrogatório. Não tenho de lhe provar nada, eu só queria me aproximar, ter uma “relação harmoniosa” com você.
Nesse ponto eu já tinha entendido que o tal poeta estava me cantando, que não tinha jeito de conversar com ele normalmente, civilizadamente, e que caíra numa esparrela. O jeito era fugir, e bem depressa.
Para meu espanto, ele perguntou novamente: você é romântica? Depende, disse eu. De quê? Depende do significado que a palavra tem para você. Como assim, você não sabe o que significa? Na literatura, sei, respondi. Mas na vida não sei direito, não. Gostaria que me explicasse.
Ah, já sei, é uma “intelectual”, respondeu. Talvez, disse eu. Ah, é? Por causa disso você merece um prêmio. Antes de qualquer reação minha, ele escreveu: sabe que prêmio? Um BLOQUEIO!!!
Perplexa, não entendendo nada do que tinha ocorrido, testei. Sim, o poeta tinha me bloqueado mesmo, com letras maiúsculas. O recém-aceito pedido de amizade já fora para os ares. Diante de caso tão surreal, procurei saber quem era. E se fosse outra pessoa se fazendo passar por ele? Um robô, um zumbi, que sei eu? Mas não, ele existe, encontrei provas materiais. Existe e teve muita raiva porque lambuzou o selo e não colou. Sem contar a notória falta de fair play. E de senso de humor, claro.
Agora, quando quero rir, repito baixinho a frase: Sabe que prêmio? Um BLOQUEIO. Parece mentira, mas não é. Um bloqueio. Assim, sem mais. E estamos conversados.
Rosângela Vieira Rocha é escritora, jornalista e professora da FAC-UnB aposentada. Tem doze livros publicados, cinco para adultos e sete infantojuvenis. É autora do romance O indizível sentido do amor (Editora Patuá, 2107).