O céu de Miragem acinzentou depois da tarde. Um apagão! Um acontecimento não inventado, o deslumbre: uma revoada de ventos arranhavam os cabelos, quase todos crespos, e os corações, quase todos secos, da gente. Não sabíamos se era nervoso, se era um nevoeiro perdido, se era falta de costume ou vontade de começar logo a chuva, porque as agonias eram de criança e a fé era de quem tinha acabado de ver Deus. Já se tinha como prenúncio, o sumário, a demora de meses em que não se pingava nenhum molhado. Apenas neblina enganada. E nada, nadinha! Era o quase sertão de sempre e tinha que parecer sofrido e faziam parecer. Acreditávamos! O turrão era o tijolo no barranco, quase uma anemia de chão. Era pedra esfarelada na mão como se fosse farinha de beiju. Endureceu tanto que morreu como poeira. Convalesceu sem misericórdias, sem condescendência, sem um piu. E não era sozinho no velório. Tinham outros tantos moribundos: gados inteiros, alqueires inteiros e lembranças inteiras morridas assim ao léu. Tudo porque foi dito que com sertão não se brinca, mesmo que fosse um quase sertão. E que era sempre lugar de gente que urra, de labutas, de gentes crentes de fé e de castigo. E vinha na memória o cisco e as recordações de quando apanhávamos como malinos em recreios de rua, de depois de mainha gritar: corre pra dentro, peste! Um frio na barriga, quase de barrela. Ardia e pulsava dentro dando choques e brilhinhos. Era assim que senti quando escureceu o céu. E começaram os trovões. O som, do que estava pra armar no céu, fazia a gente querer sombrear a gente mesmo. Pra ver a festa, a esperança de ter um lajedo, mesmo que fosse só até perder o olhar. Esperávamos como santos ocos na certeza de festejos. Demorava derramar. E mais outro trovão. Depois da pintura de tons gris, os relâmpagos. Eram trocados. Primeiro um, depois o outro. Rasgavam a lonjura os raios. Era tão bonito de se ver, que dava uma sensação estranha de que tudo começaria de novo, e de novo. Invertido! E que se faria separação da luz e das trevas no primeiro dia ou seria novamente o ardido da explosão do início, dos elementos dos entendidos das letras. A mistura! Que algumas coisas estariam recomeçando, talvez os mesmo erros. E era isso que sentíamos. Sem a menor consideração pelos costumes. Era tudo rebeldia. A cada estrondo os bichos aquietavam. Era o silêncio. Só ouvimos o que tínhamos dentro de nós e era bem pouquinho. Uma ninharia. Era quase nada, igual a isso tudo ao redor. Juvenal tentava puxar sua tropa para os coxos; Dona Amélia, já octogenária, brincava feito filhote desmamado atrás dos vagalumes atordoados pelos mexidos dos matos; Bigode latia o desespero e a confusão das folhas que tufavam perto da cancela. Parecia final de ano, quando a gente sabia que amanhã seria sempre a mesma coisa, mas que hoje parecia só com hoje. O rebolado de dentro já fazia redemoinhos, já eram maremotos e salvem-se quem puder. Mas nem uma gota descia. As lamparinas já inflamavam a escurecida tarde mágica. Os baldes postos, as gamelas todas desemborcadas. Os meninos já estavam peladinhos para o banho, para as bicas. Corava a gente a esperança que engrandecia pequena e depois desmedida. E mais um rasgo do céu e outro trovão. Parelhavam! Num instante tive a impressão de que o chão tremeu apavorado com o suor que estava por vir. E veio ansioso o tardio. Pingou o primeiro caldo doce de Deus. Depois mais um, dois, três e a testa já lacrimejava. Não sabia se era de dentro o choro ou se era banhado. Caiu feito parido. De uma vez. Não era nem fria, nem de vez a água. Era sonhada. E os barulhos e os alumiares harmonizaram. Eram juntas e siamesas. E do derramado veio o sereno, a chuva acalmada que molhava os pés da gente, depois molhava os pés do chão e, ainda mais depois, os pés dos sorrisos parcos. Vó Luzia já tinha falado que iria ir sem ver arco-íris, mas se viu encantada ao ver que as cores dele nunca tinham morrido e eram iguais ao que era antes, quando menina. Ficou sentada na cadeira, cúmplice, bem na porta da rua, e só deixando os pés molhando debaixo da chuva. A quentura se foi tomando afrescos, se lavando, boiando para outra margem e aí veio aquela certeza de que tudo começaria de novo e de novo. Foi tudo rasteiro e o sol veio num estalo. Primeiro secou o caminho, depois a janela, e seguiu o varal até esturricar os matos, os pelos, a garganta e o sono, que veio suave, ralentando, estiando até parar no acostumado.
Alessandra Barcelar é historiadora, vive em São Paulo, onde nasceu, e atua na área de Gestão Hospitalar e Economia da Saúde. Publicou em várias revistas literárias do Brasil e de Portugal. Colaborou com a Antologia Mitos Modernos I (no prelo), premiada com o Prêmio Le Blanc de Arte sequencial, Animação e Literatura Fantástica.