cinco poemas de Alexandre Guarnieri

a página marinha [excerto]

“e enquanto você lê/ o mar está virando suas
páginas escuras,/ virando/ suas páginas escuras”
Denise Levertov

~ /quatro ~

~ ( o labirinto intramarino ~ tremeluzindo
espelhos vivos ~ de vincos cor de vinho
~ murmúrios / marulho ) ~ o mar possui cristas
dorsais, que eriça ~ seus ladrilhos são
incorpóreos menires sob a fossa abissal ~
há cariátides de cristal decorando os
recônditos de seu salão principal ~ ( iemojah,
rainha dos redemoinhos ~ iemanjá manejando jangadas
na encruzilhada das águas) ~ há um pomar esquecido,
de astrolábios outrora dourados, agora tão
corroídos ~ náufraga morada dos astros ~ de uma
mínima astronomia de ostras / se estrelas-marinhas
são sóis irrisórios ~ nebulosas mergulham / e
polvos retorcem seus tentáculos constelares ) ~

penhasco

assoalho visitado às bordas do fiorde
suas escarpas de basalto | o espaço
entre o ar e o mar embaixo que quase
julgaríamos raso | hirtas suas afiadas
bordas | símiles às de uma faca
árabe ( arqueada ( cimitarra
| o que as navalhas da erosão
erigem é este grupo de rochedos
pouco a pouco sendo degolado
assim o penhasco largo | vasto:
ponto turístico para narcisos
e suicidas | amplo plenário de
pedra d’onde se observa o sol
nascer | ou se pôr | platô sólido
observatório possível | existe
essa muralha terrena | pesaroso
mármore erguido| lugar de uma
solidão extrema | avizinhando o
mar triste a esse chão de limites

ilha na névoa

cercada pela tempestade que ameaça
______________sua secreta falésia de pétalas
toda e qualquer ilha, o mesmo símbolo
_____em todo ímpeto que habita, o mesmo nível
em todo mar que ataca a pedra:
________________________a mesma meta
__________correnteza eterna
se há algo que a ilha renega e é eterno
_____________________________é esta névoa
que atraiçoa seu único insulano,
um passo em falso:
________________________entregue à queda

mágoa no sal

enquanto o mar reclama, no amor
em que pacificamente recolhe
sua parcela mais calma e ampla
à face de espelho tão plácido e plano,
posseidon calado trama ( da sub-
marina treva ) suas táticas de guerra,
( tem o tridente como arma secreta,
tripartida seta ) contra todos os
que habitam a superfície da Terra;

seu único estratagema é fazer
com que todos os descendentes
dos símios primeiro derramem
todo sal marinho circulando
em seus organismos vis, em seus
próprios corações e almas, toda
e qualquer lágrima revele enfim
a presença latente de sua própria
saliva grossa e espumosa, a baba
escorrendo pela barba — o gosto
do sangue também é salgado e
metálico —, como ondas de pavor
e desencanto, ameaçando pouco
a pouco o ancoradouro, outrora
tão seguro, de nosso júbilo e rego-
zijo, todo arroubo mais profundo

viagem fantástica

Para Julio Verne e Harry Kleiner

toda profundeza imaginável pelo homem,
conquistada ou ainda inexplorada,
sombria, ameaçadora ou prodigiosa,
toda mais longínqua profundidade,
recriada imaginativamente por séculos,
jazendo a apenas alguns centímetros
da superfície da pele, sob a trama de
nervos que segue a construir os sonhos,
da medula ao cérebro humano, esse
antro de chiaroscuro, a esponjosa
massa cinza sob o osso do crânio duro;

puséssemos numa seringa hipodérmica
a miniatura de um submarino nuclear
mergulhado em solução fisiológica e
injetássemos corpo adentro a peça
a sangue frio, navegaria submerso
com energia suficientemente gerada
para zelar sempre, sem erro, sem medo,
pelo mais perfeito funcionamento?

por quanto tempo seria capaz de estudar
nossas fossas abissais, internas,
nossas zonas de guerra, onde glóbulos
atacassem micróbios entre outros
vírus e furtivos inimigos batalhando
em tantas trincheiras de carne e nervo?

no fluido da medula, no sangue
que circula, tanto nautillus
quanto proteus completariam
a inusitada frota: as vinte mil
léguas submarinas enfim vencidas
na saliva sob nossas línguas…

| poemas do livro O sal do Leviatã (no prelo). |

Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Integra o corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens. Lançou Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011), disponível gratuitamente [AQUI], Corpo de Festim, livro ganhador do 57º Jabuti, 2ª Edição pela Penalux, disponível gratuitamente [AQUI], e Gravidade Zero (Penalux, 2016), disponível gratuitamente [AQUI]. Em 2016, publicou pela Editora Patuá a antologia Escriptonita (poemas tematizando super-heróis), do qual foi um dos organizadores. O sal do leviatã (2019), seu livro mais recente, está no prelo.