a patética história da loba faminta e banguela, de Ivana Arruda Leite

Cá estou eu de novo. O que fazer se meu faro sempre me leva ao encontro do que mais temo? Trago a morte nas veias por isso não adormeço nunca. Já não espero salvação. Mesmo assim, vivo perguntando às pessoas: está com você? Está no seu bolso? Mas no bolso as pessoas só carregam alfinetes e maus pressentimentos.

Na padaria da esquina bebo um gole de cerveja pra parecer interessante e distender nervos tão tensos, coração à beira do colapso.

As ruas do Sumaré são cheias de subidas e descidas e eu espero não escorregar dessa vez. A loba é velha mas ainda chega lá. É este o prédio? É este o número? Minha miopia sempre aumenta quando estou nervosa. Como é essa a rotina, eu vivo cega. Um mais um, na minha conta, acaba sempre dando um.

O porteiro do prédio, ao ver a garrafa de vinho na minha mão, faz um muxoxo e comenta: lá vem a loba atrás do chapeuzinho.

E se quando eu tocar a campainha, uma mulher loira e linda atender a porta? Ele não me falou se se casou nesse tempo em que não nos vimos. Só me deu o endereço e falou: aparece lá. Se tiver mulher, faço o gênero velha amiga, tomo um café e vou embora. Chega de roubar marido dos outros.

Mas não. Menino está sozinho e ainda tem as duas lindas covinhas e o mesmo charme; a cabeça, um guidão de moto virado de ladinho; sorriso XL/250. As pernas agora têm pinos de platina, menino está todo quebrado por dentro e fala sem parar. Eu escuto sem prestar a menor atenção. Ah, essas covinhas ainda vão me matar.

Entre nós, salvaram-se todos. Só falta aprender a viver sem tanta machucadura. Vou bebendo o vinho enquanto ouço uma história comprida de trás pra frente. Menino desmente tudo o que me disse um dia. Era tudo brincadeirinha de menino que gosta de pregar peça nos outros. Ontem eu era dez anos mais velha do que ele, hoje temos a mesma idade. O que foi que aconteceu? O que te fizeram, menino? Me diz onde eles moram que eu mando matar, prender, eu arrebento quem te trancou nesse apartamento. Foge, menino, vai embora.

Menino amou, desamou, adoeceu e agora quer sarar. Menino sofre. Faço o que posso. Pego menino no colo, canto canções de ninar, mas menino é arredio, escorrega, diz que é melhor deixar pra lá. “E quando você for embora, como vai ser?”, me pergunta já sofrendo por antecipação. Eu não vou embora, menino, eu gosto muito de você. Uma hora a vida fica boa de novo, acredite em mim. Mas menino não me ouve, menino só olha pra dentro. Um dia eu te conto histórias de arrepiar, mas menino não quer saber. Pra que falar?

Olha, menino, eu também tenho medo de escuro, me dá sua mão, me deixa ficar aqui, hoje, amanhã e depois de amanhã. Eu não vou te fazer mal nenhum, prometo. E ainda te trago um monte de presentes. O que você quer? Dez big macs com batata frita, um chá de hortelã, treze bolos floresta negra, Milão, Paris, Frankfurt? Diz que eu mando buscar, mas para de chorar, pelo amor de Nossa Senhora Mãe de Deus. Menino sente muita falta da mãe. No silêncio, menino escuta sempre os mesmos pensamentos que o deixam louco.

No dia seguinte eu acordo sozinha. Menino fugiu. Ficou bom, achou o rumo e voou pra longe. De lá me manda um cartão agradecendo os presentes, os passeios, a passagem, o curso em Milão. Valeu! Eu tinha razão, menino nasceu pra muito mais.

Ao me ver sentada na calçada entornando uma garrafa de vinho, o porteiro do prédio faz um muxoxo e comenta: pobre loba, nem devorar chapeuzinho sabe mais, deixou ele escapar de novo.

Ivana Arruda Leite nasceu em 1951, em Araçatuba (SP); é mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Publicou quatro livros de contos: Histórias da Mulher do Fim do Século, Falo de Mulher e Ao homem que não me quis (reunidos na antologia Contos Reunidos) e Cachorros. Publicou ainda uma novela, Eu te darei o céu — e outras promessas dos anos 60, e três romances: Hotel Novo Mundo, Alameda Santos e Breve passeio pela história do homem. É autora de livros infantis e infanto-juvenis. Está em todas as redes sociais.