Era uma grande declaração de amor, mas eu não tinha nada a ver com isso. A culpa era da internet, que transformou o mundo numa cidade pequena, daquelas com fanfarra e coreto, onde meu irmão podia arranjar uma Namorada Turca (turca de verdade, turca da Turquia) como quem se apaixona por uma garota de bandana no trem. Ele poderia entrar no parperfeito.com, ou beber umas a mais e beijar uma colega de trabalho ou cruzar olhares num bar com qualquer uma que morasse a um raio de 10 quilômetros. Não. Aquele querubim safado que a gente chama de cupido não liga a mínima para a praticidade. Flechou o pobre Jairo em um fórum de internet sobre miniaturas. O resultado é esse que vocês estão vendo. Eu, na ponte que cruza o estreito de Bósforo, com um ridículo embrulho de fita rosa e uma missão. Tudo porque nasci do mesmo útero que o último dos românticos.
Não foi por causa dele que escolhi a Turquia. Inclusive, se soubesse no que estava me metendo, teria evitado. Antes da cirurgia, quando a visão vai afunilando e você se dá conta que tudo pode ficar escuro para sempre, eu pensei em todas as coisas que eu ainda não tinha visto. Nessa lista apareceram coisas que eu nem suspeitava que minhas retinas pretendiam absorver, como girafas e cavernas e o nascer do sol visto de um balão. Os balões, de todas as cores, iluminados com luz suave da cor de laranjas foi a última coisa que imaginei antes da anestesia me puxar para sob a linha d’água. Na manhã seguinte, com a boca pastosa, constatei que permanecia viva e enxergava. Descobri que o passeio de balões ao amanhecer se fazia em Sorocaba e também na Capadócia, na Turquia. E eu já conhecia Sorocaba.
A viagem foi um presente para mim mesma, pela minha sobrevivência. É verdade que meu único mérito nisso tudo foi estar em dia com o plano de saúde. Ainda assim, realizei a grande façanha de não morrer, de deixarem instalar uma bateriazinha que fazia meu coração ribombar no ritmo certo e constante, sem fatigar, sem parar, sempre no ritmo, um coração de coelho Duracell. Saquei a grana da poupança e comprei a passagem, e, com o que sobrou, uma mala boa com rodinhas que não travam. Fui me lembrar da Namorada Turca só quando notei que meu irmão ficava com as pernas inquietas toda vez que eu mencionava a viagem. A desalmada jamais me visitou no hospital, nem mesmo por skype. Nunca cheguei a prestar muita atenção nas fotos que Jairo mostrava, e sempre me esquecia da cara dela poucos segundos depois. Acho que tinha cabelos pretos e lisos, bochechas redondas. Como se fosse muito turca, mas turca de um jeito que você poderia encontrar em Juiz de Fora. Não fiz nada por ela. Fiz por Jairo, que acordou sei lá quantas manhãs com o rosto vermelho e marcado depois de cada noite passada no sofá do hospital.
A missão de amor era a seguinte:
1. Levar a Istambul o pacote.
Não sei o que há dentro dele. Quando recebi já estava lindamente embrulhado com um papel prateado, arrematado com um cartão preso com quantias obscenas de durex. Torci que “surpresa romântica” não fosse código para meio quilo de coca. Um teste perfeito para meu Coelho Duracell recém-colocado: passar pelo raio-x e pela alfândega com um pacote suspeito metido na bagagem de mão. Mentalmente, me preparei para ser parada, farejada por cães, questionada em salinhas mal iluminadas em cantos desconhecidos do aeroporto. Em vez disso, o scanner soltou um apito muito débil quando passei, e então entreguei o papel do médico que alertava que eu não poderia tirar tudo que pudesse conter metais — o celular, os brincos, o cinto — e colocar na bandeja de plástico que eles ofereciam porque um desses metais era o meu coração. Depois disso o oficial foi muito gentil e até me deixaram subir primeiro no avião.
2. Deixar o pacote em um local público e dar a meu irmão sua localização exata.
A ideia era manter segredo sobre minha viagem. Jairo não queria avisar a Namorada Turca de que eu estaria em seu país, levando um presente para ela. Diria apenas para ela ir a tal local e procurar por um pacote assim e assim. E, quando ela perguntasse como o presente apareceu ali, ele diria apenas que era mágica ou destino. E então ela não teria escolha além de largar tudo e ir ao Brasil e se casar com ele e amá-lo para sempre. Algo assim.
Não fiz isso logo de cara. A Namorada Turca estaria em Istambul todos os dias. Peguei o transfer direto para o hotelzinho em Bekisҭas, que tinha chuveiro poderoso e um frigobar cheio de refrigerante. Depois de dois dias visitando palácios e bazares, de comprar chaveiros de olho turco para todos que conhecia nas lojinhas e pedir para estranhos tirarem minha foto na frente de mesquitas, mesmo sabendo que cortariam sem piedade o topo dos minaretes, resolvi enfim ceder aos apelos de Jairo, que todos os dias me mandava uma sequência de mensagens perguntando educadamente sobre a viagem, o que tinha visto, o que tinha comido, como estava o tempo, circulando sem pousar na pergunta que queria fazer: eu tinha afinal depositado o seu pacote numa esquina?
No dia seguinte, coloquei o pacote na mochila e vesti calças, apesar do calor que fazia o suor brotar na nuca, entre os seios e atrás dos joelhos. Não queria pegar emprestados os panos que eles ofereciam na entrada das mesquitas, já empapados no suor de turistas e mais turistas. A mesquita era lindíssima, maior que a catedral de Sorocaba e mais bonita também. Devia também ser fácil de limpar, com aqueles azulejos. Só passar um pano. Simpatizei ainda mais com os turcos e depois de pedir que tirassem uma foto minha na frente do ponto turístico decidi cumprir minha missão e cimentar a união de Jairo com sua Namorada Turca.
Peguei um táxi, que em turco se escreve de forma muito melhor. TAKSI. Apontei pra ele no guia o estreito de Bósforo. Achei que seria bonito deixar o pacote ali, metade na Europa, metade na Ásia. Naquele lugar que comunicava mares tão separados. Talvez aquele pacote estivesse me infectando com o romantismo de Jairo. Demoramos vinte minutos a mais do que o guia indicava, mas a vista era tão bonita que não me importei. Perto do ancoradouro havia um deque com bares e restaurantes, e pássaros marinhos aboletados em mourões. Mais pra frente, havia um canteiro de plantas e ali eu deixei o pacote de fita rosa, debaixo de um arbusto, e contei quantas árvores havia desde a água.
Já no hotel, enviei a localização por e-mail. Meu irmão me mandou um vídeo emocionado, agradecendo e dizendo que já tinha passado tudo para ela. Sorria tanto que era possível ver 22 dos seus dentes pela tela do celular. O canino estava um pouquinho amarelo e pensei que seria bom se ele os escovasse antes de encontrar a namorada pela webcam.
Na tarde seguinte, não resisti. Fui verificar se o pacote ainda estava lá. Umas folhas tinham caído sobre ele, e o papel estava quente de sol. O Coelho Duracell bateu mais fraquinho. Será que ela viria? A Namorada Turca trabalhava e ainda eram 16h. Sentei no restaurante em frente. Se ela viesse, ah, se ela viesse, eu poderia filmar com o celular a sua reação. Jairo ia ficar tão feliz. Talvez, ela até abrisse ali na hora, matando também a minha curiosidade sobre o que havia no diabo do pacote.
Pedi uma cerveja e uma porção de Mezze. Vieram azeitonas grandes como olhos e um patê que parecia feito de farelos, além de legumes curtidos e um grande pão redondo. Conforme a tarde se esvaía, mais vezes eu precisava erguer meus olhos do guia turístico. O cais era ponto de encontro de jovens, e eles desciam em rebanhos alegres de quatro ou cinco e se sentavam nos mourões para ver o dia acabar. Às vezes passava uma moça sozinha, de cabelos pretos, e eu pensava É Agora, Caralho. Mas não. Anoitecia tarde no verão e aos poucos os estudantes e os pássaros foram embora. Mastiguei um bom tempo a última azeitona, e depois chupei o caroço, adiando a hora de pedir a conta.
Quando o garçom trouxe a cadernetinha de couro com o recibo, ouvi o barulho das folhas se mexendo. Era a Namorada Turca! Joguei o dinheiro sem saber muito bem se o valor estava certo e corri até ela com o celular na mão, tentando desbloquear a tela e ativar câmera, enquanto tropeçava no escuro. Ela se virou, assustada, e a luz do flash pegou direto em seu rosto. Os lábios marcados, o cabelo de um preto profundo e cílios espessos como vassouras. Entendi só pessoalmente o que Jairo tinha entendido via câmeras toscas de velhos laptops. Não haviam turcas como aquela em Juiz de Fora. Não haviam mulheres como aquela em lugar nenhum. Me expliquei em um inglês gaguejado e ela me levou para sua casa e me deixou ficar ali.
Nunca descobri o que estava no pacote de Jairo.
Mesmo hoje, ela ainda o guarda sem abrir, na cristaleira trancada a chave da nossa casa. Ela, minha Namorada Turca, gosta de dizer (e diz sempre que bebe demais) que o presente que ele tinha mandado era eu.
Nathalie Lourenço é publicitária por profissão e paulistana por nascença. Nunca possuiu um pônei. Seu livro de estreia, Morri por Educação, foi finalista do concurso Maratona Literária e publicado pela Editora Oito e Meio. Teve contos publicados em revistas literárias como Blecaute!, Flaubert, Parênteses, Vacatussa, Philos, Subversa, Raimundo e outras. Escreve também crônicas em medium.com/@ridicula.