Demoraria talvez um dia inteiro, se eu fosse mostrar a você as minhas cicatrizes — e, uma noite correspondente, se eu contasse a história de cada uma —, pois elas ocupam meu corpo todo. Mas não me custa escolher uma ou outra, como exemplo, a memória não pode reacender a dor, só avivar suas brasas. Esta aqui, no joelho direito, quem me desenhou foram umas pedras, sobre as quais caí quando andava de bicicleta, veja o capricho do riscado, uma linha diagonal quase perfeita. Um pouco mais acima, subindo a coxa, um arame farpado me escreveu esta marca; eu fugia de um touro, depois de lhe atirar mangas podres. Esta mancha no meu braço esquerdo causa aflição, às vezes até repugnância, quando as pessoas descobrem que foi minha mãe, embora num ato involuntário, quem a fez: ela tropeçou no gato e derramou sobre mim o óleo fervente da frigideira, que, faminto para fritar qualquer superfície, ficou feliz por encontrar, inesperadamente, a pele nova de uma criança. Aqui, nas costas, este vinco fundo, que antes era um traço de mão inábil e hoje parece até um bordado bonito, foi a fivela do cinto do meu pai; ele soube que eu beijava o filho do vizinho, mas nunca soube, nem sequer imaginou, as coisas que eu fiz com o filho do vizinho. E, olha, passe o dedo, dá pra sentir o corte sinuoso, meio à revelia, de quem tinha pouca firmeza – foi a ponta da faca que uma amiga afundou em meu ombro, a inveja dela crescia à medida que minha beleza chamava a atenção de seu marido. Ah, essa outra cicatriz foi produzida por uma tesoura; meu noivo aparava cuidadosamente a barba, quando eu disse que os narcisistas deviam também se desbastar lá embaixo. Há muitas outras, esculpidas em mim por quinas de mesa, giletes enferrujadas, estiletes, bitucas, cacos de vidro, abridores de lata, quase todas ocultas pela roupa. Quase não há vazios para novas pinceladas de dor no meu corpo, que já foi uma tela imaculada. Mas nesse canto aqui há um espaço reservado — eu já sei! — pra você deixar sua marca.
João Anzanello Carrascoza é escritor e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Publicou os romances Caderno de um ausente, Menina escrevendo com pai e A pele da terra, que compõem a Trilogia do adeus, e várias coletâneas de contos, entre as quais Diário das coincidências, Tempo justo e Catálogo de perdas. É também autor de obras para o público infantojuvenil. Suas histórias foram traduzidas para o bengali, croata, espanhol, francês, inglês, italiano, sueco e tamil. No Brasil, recebeu os prêmios Jabuti (CBL), Fundação Biblioteca Nacional (FBN), Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), além dos prêmios internacionais Radio France (RFI) e White Ravens (Library Munich).