No Livro das perguntas (Cosac Naify, tradução de Ferreira Gullar), o poeta chileno Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto (1903-1973), também conhecido como Pablo Neruda, se pergunta — e nos pergunta: “Onde está o menino que eu fui? Está dentro de mim ou se foi?”
Ao que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), sob o ninho desgrenhado de seu bigodão, prontamente redargue:
— Maturidade do adulto: recuperar a seriedade da criança ao brincar.
É assim que, a bordo do tapete voador de Peter Pan, ensaiemos algumas respostas (alguns soslaios) para as perguntas de Pablo Nietzsche Neruda.
“A cratera é uma vingança ou um castigo da terra?”
Vingança? Não. Castigo da terra? Tampouco. A cratera é uma pegada.
“Como dizer à tartaruga que a supero em lentidão?”
Pergunte a Aquiles.
“É verdade que as esperanças devem regar-se com orvalho?”
“Com açúcar, com afeto” (Chico Buarque).
“Há alguma coisa mais triste no mundo que um trem imóvel na chuva?”
Observar o trem imóvel na chuva – entreouvir as gotas tamborilando pelo teto enferrujado dos vagões – ao lado de alguém que nunca mais vou abraçar.
“Em que janela fiquei olhando o tempo sepultado?”
Em que sepulcro fiquei olhando a janela do tempo?
“Onde o espaço termina se chama morte ou infinito?”
Onde a morte termina se chama espaço infinito.
“E como se chama este mês que fica entre dezembro e janeiro?”
Utopia.
“Como ganhou a liberdade a bicicleta abandonada?”
Abandono, liberdade perpétua — e condicional.
“De que ri a melancia quando a estão assassinando?”
Do condenado à forca que, após despencar do cadafalso, tem a mais rija de suas ereções e ejacula no momento mesmo em que expira.
“Por que os velhos esquecem as dívidas e as queimaduras?”
Esquecem mesmo?
“Por que as ondas batem na rocha com tanto vão entusiasmo? Não cansam de repetir sua declaração à areia?”
Porque é preciso imaginar Sísifo feliz — e livre.
“O outono não parece esperar que alguma coisa aconteça?”
Sísifo acredita que sim.
“Chega o outono legalmente ou é uma estação clandestina?”
Assim falou o Carimbador maluco, de Raul Seixas:
“5, 4, 3, 2…
Parem, esperem aí!
Onde é que vocês pensam que vão?
“Plunct-plact-zum
Não vai a lugar nenhum!
Plunct-plact-zum
Não vai a lugar nenhum!
“Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar!
Se quiser voar
“Pra Lua: a taxa é alta
Pro Sol: identidade
Mas já pro seu foguete viajar pelo universo
É preciso meu carimbo dando o sim
Sim, sim, sim
“O seu Plunct-plact-zum
Não vai a lugar nenhum!
“Plunct-plact-zum
Não vai a lugar nenhum!
“Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar!
Se quiser voar
“Pra Lua: a taxa é alta
Pro Sol: identidade
Mas já pro seu foguete viajar pelo universo
É preciso meu carimbo dando o sim
Sim, sim, sim
“Plunct-plact-zum
Não vai a lugar nenhum!
“Plunct-plact-zum
Não vai a lugar nenhum!
“Mas ora, vejam só, já estou gostando de vocês
Aventura como essa eu nunca experimentei!
O que eu queria mesmo era ir com vocês
Mas já que eu não posso
Boa viagem, até outra vez
Agora
O Plunct-plact-zum
Pode partir sem problema algum
“Plunct-plact-zum
Pode partir sem problema algum
(Boa viagem, meninos
Boa viagem)”.
“Por que as árvores escondem o esplendor de suas raízes?”
“Quando fizer o bem, faça-o aos poucos; quando fizer o mal, faça-o de uma só vez” (Nicolau Maquiavel).
“Como se chama a tristeza em uma ovelha solitária?”
Bode expiatório.
“Por que os imensos aviões não passeiam com seus filhos?”
Pergunte à angústia suicida de Santos Dumont quando o pai vislumbrou o voo de seus filhos bombardeiros.
“A fumaça fala com as nuvens?”
Historicamente, a fumaça as asfixia.
“Onde deixa o punhal a águia quando se deita numa nuvem?”
“Mantenha seus amigos por perto; quanto aos inimigos, mantenha-os mais perto ainda” (Michael Corleone, também conhecido como o poderoso chefão).
“Por que Cristóvão Colombo não pôde descobrir a Espanha?”
O Pelo Punhal da Santa Cruz precisava de novos cemitérios.
“Que bandeira se agitou ali onde não me esqueceram?”
Em uma das faces, lemos “Eu te perdoo”; na outra, “Vou me vingar”.
“Por que o céu está vestido tão cedo com suas neblinas?”
O lugar mais escuro fica justamente embaixo da lâmpada (provérbio chinês).
“Para onde vão as coisas do sonho? Vão para o sonho dos outros?”
Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta e não sabia, ao acordar, se era um homem que tinha sonhado ser uma borboleta, ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem.
“Não vês que a macieira floresce para morrer na maçã?”
— Não! — exclama Isaac Newton.
“Quando lê a mariposa o que voa escrito em suas asas?”
“A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando” (Machado de Assis).
“Como se combina com os pássaros a tradução de seus idiomas?”
Como se combina com os idiomas a revoada de seus pássaros?
“Em que idioma cai a chuva sobre cidades dolorosas?”
O sofrimento é poliglota.
“De onde vem a tempestade com seus sacos negros de pranto?”
Neste mundo, ora, de onde ela não viria?
“As lágrimas que não choramos esperam em pequenos lagos? Ou serão rios invisíveis que correm para a tristeza?”
As lágrimas que não choramos esperam em pequenos lagos até desaguarem em rios invisíveis que correm para a tristeza.
“Sofre mais quem espera sempre ou quem nunca esperou ninguém?”
Sofre mais quem, ao dizer que nunca esperou, só faz esperar sempre.
“Caem pensamentos de amor dentro de vulcões extintos?”
Jazem pensamentos de amor dentro de vulcões extintos.
“Como se chamam os ciclones quando não se movimentam?”
Morte.
“Vês na caveira tua estirpe condenada a virar osso?”
Ser e não ser — eis a resposta.
“Não crês que a morte vive dentro do sol de uma cereja?”
“Vê-se muito da tristeza do mundo nos olhos de um cavalo” (Guimarães Rosa).
“Se já estou morto e não sei, a quem devo perguntar as horas?”
— A mim — proclama Mefistófeles de braços abertos.
“Por que se suicidam as folhas quando se sentem amarelas?”
Pergunte à icterícia de Van Gogh.
“Talvez uma estrela invisível seja o céu dos suicidas?”
— Na mosca! — exclama o homem ridículo, personagem dostoievskiana do conto “O sonho de um homem ridículo”.
“Que aprendeu da terra a árvore para conversar com o céu?”
— Pai, por que me abandonaste?
“Que significa persistir chegado ao beco da morte?”
“Creio porque é absurdo” (Tertuliano).
“Não será nossa vida um túnel entre duas vagas claridades? Ou não será uma claridade entre dois triângulos escuros? Ou não será a vida um peixe treinado para ser pássaro?”
Assim falou Dante Alighieri: nossa vida como uma claridade entre dois triângulos escuros: inferno; nossa vida como um peixe treinado para ser pássaro: purgatório; nossa vida como um túnel entre duas vagas claridades: céu.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa junto à Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, a antologia Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Escreve, periodicamente, para o caderno literário “Aliás”, do jornal O Estado de S. Paulo. Página na internet: Portal Heráclito.