marcos, de Márcia Denser

(eu sei que estou pulando muitos anos — eu parei no lançamento de O Animal dos Motéis, junho de 1981 — mas a escrita não raro não quer seguir a cronologia até porque agora eu precisava relatar certos fatos sobre quando e como e por que eu tive que aprender a amar em dado momento da minha vida, deixando a carreira e a literatura de lado por algum tempo, sendo apenas eu mesma, nua e sem bibliografia)

Chamava-se Marcos. Eu o conheci em setembro de 1989 numa galeria de arte. Fizera 40 anos e minha vida estava num momento difícil, um ponto sem retorno: acabara de escrever A Ponte das Estrelas, mandara para a Companhia de Letras, Brasiliense e Best-Seller pedindo um adiantamento de cerca de 5 mil dólares (minha cotação estava em alta) e esperava a retorno das editoras. Antes, no final de 1986, me demitira da Fiesp.

Trabalhara uns meses como redatora na Salles, uns meses como repórter e redatora na Folha (mais tarde falo disso em detalhes). Estivera na Alemanha, voltara, Ray-Güde me mandava uns royaltis das traduções, mas era pouco.

Antes da Ponte havia resolvido viver de literatura: topara no ano anterior escrever um romance de encomenda, Caim, para o José Carlos da Global, a partir dos incentivos da Lei Sarney (a antiga Ruanet), mas continuava muito pouco.

Para me manter no apartamento dos Jardins, decidi que não funcionava ter uma mãe no meio da vida, então despachei Dona Isa pra viver uns tempos com Teréca: ambas me amaldiçoaram durante décadas por isso!

Segundo Jung, a consciência tem duas funções superiores — razão e sentimento — e duas auxiliares — intuição e percepção. As quatro correspondendo aos elementos: razão = ar, sentimento = água, intuição = fogo, percepção = terra. Geminiana dupla, sou por excelência um tipo pensativo (seis planetas em Ar!), bastante intuitiva (3 planetas em fogo) e pragmática (um em terra), mas não tenho água no mapa. Ou seja, a função do sentimento eu a usava de forma extremamente primitiva, infantil. Era quase uma nota muda. Mas tal função precisa ser incorporada à consciência como parte da integração da personalidade, e isto será feito obrigatoriamente quer se queira ou não, por bem ou por mal, de forma tardia e absolutamente dolorosa para si próprio e quem estiver próximo, ou de forma suave, precoce, etc. O meu processo além de tardio foi extremamente doloroso pois implicou:

1) No processo de escrita de A Ponte das Estrelas (a ideia do Marcos Rey, meu conselheiro na época, era que eu escrevesse um best-seller que vendesse horrores para, então, poder escrever o que bem quisesse. Ledíssimo engano de ambos, claro. Mas neste livro integrei escrita e desenho — lembram que eu também desenhava? Pois é) que foi extenuante e mágico, além da consequente identificação com minha personagem, a princesa Blixen;

2) Também me identifiquei COMPLETAMENTE com a Maria Madalena do filme de Martin Scorcese, A Última Tentação de Cristo: furei o disco da trilha sonora de Peter Gabriel, tocava umas 20 vezes por dia (típico comportamento adolescente ligado na função sentimental tardia);

3) Numa conjunção de planetas (ou ponte de estrelas) em Capricórpio que ocorreu na época: Saturno, Plutão e Netuno (creio), perfeitamente de acordo com a lei da sincronicidade;

4) Na expulsão de Dona Isa lá de casa uma vez que esta atrapalhava minha busca por um parceiro (Vênus costuma ser especialmente cruel);

5) No investimento massivo de toda minha libido no sucesso editorial de A Ponte das Estrelas como minha obra-prima (vejam como eu estava maluca);

6) E no meu amor por Marcos que iria durar 7 anos.

Marcos tinha 37 anos (e, assim como eu, aparentava dez anos menos), era santista, um homem bonito (mas duma beleza na qual eu não teria sequer prestado atenção fosse outra época): alto, moreno, físico atlético e esbelto, queimado de sol, de finos traços espanhóis, calculadamente másculo, um tanto homossexual, antes, bissexual, lembrando certos garotos de programa: blazer, echarpes de seda, mangas arregaçadas, anel no dedo mínimo, pulseira de ouro, medalhão de corrente, excessivamente perfumado. Um sujeito ostensivo, parecendo esses sedutores profissionais. Provocava desconfiança. Parecia de Escorpião mas era Virgem, que aliás dá Virago. Mas o sorriso tinha um ricto amargo, sombras sob os olhos, um cansaço precoce e inesperado na expressão. Uma resignação antiga.

Filho mais novo de três irmãos, mãe viúva com propriedades, levava uma vida bem dura como bom filho de sua mãe da qual recebia mesada, pintava os quadros que ela mandava e herdaria algo de seu quando a velha empacotasse. Um tipo secundário integralmente sintonizado com o sentimento e as sensações — não me refiro às emoções — porém aqueles sentimentos profundos que nos consomem como ressentimento, ternura, ciúmes, saudades, rancores, inveja, nostalgias infinitas. E que moldam nosso caráter para sempre.

Tudo aquilo que para mim significava uma infinita perda de tempo — eu tinha mais o que fazer.

Não tinha. Não tinha mais.

Marcos não tinha dinheiro, não tinha emprego. Vivia da mesada da mãe num apartamento minúsculo no Paraíso cedido por ela, da venda de algumas obras em exposições ou para particulares aqui e ali. Investia numa carreira artística, mas faltavam relações, cultura e a grana suficiente. Talento tinha até demais — fora o garoto da praia que, 25 anos antes, ganhara todos os prêmios de escultura na areia.

Mas tornar-se artista plástico de sucesso é um investimento de altíssimo risco envolvendo muito dinheiro, várias décadas de dedicação constante, estudos, exposições, bolsas, a constituição e manutenção dum ateliê e respectivo acervo, viagens ao exterior.

De forma que, advindo duma família santista e dependendo financeiramente da mãe, tornou-se um artista eminentemente local. Provinciano. Aquele sujeito que, pra atender mamãe, pinta o quadro combinando com o sofá. A resignação antiga vinha daí. E eu me apaixonei perdidamente por ele. E duma forma tão irremediável e sem esperança que quase não sofria. Porque não ia adiantar.

A propósito: o adiantamento de 5 mil dólares foi pago pela Best-Seller — o que resolveria meu aluguel por um ano ou dois, algo essencial numa situação de desemprego, sem salário fixo — resolveria, se não fosse sequestrado pelo Plano Collor em março de 1990.

Avaliando tudo retrospectivamente Marcos e eu estávamos empatados: não tínhamos emprego e investíamos numa carreira artística.

Com a diferença que a minha estava feitíssima — aos 36 anos, com o lançamento de Diana Caçadora, meu quarto livro, cuja edição de três mil exemplares se esgotara em uma semana, eu realmente chegara ao auge. Com propostas de várias editoras, elogios da crítica mais rigorosa, aquela que é insubornável — Wilson Martins, Paulo Francis, Nelly Novaes Coelho, Leo Gilson Ribeiro —, entrevistas, programas de televisão e rádio, tema de dezenas de teses de mestrado e doutorado no Brasil e EUA, o trabalho de minha agente Ray-Güde com as traduções para os países de língua germânica, Alemanha, Suiça, Holanda (só muito mais tarde viria o leste europeu via Itamaraty), programas de intercâmbio e bolsas (DAAD via Ray, Iowa via Raduan Nassar, Fundação Calouste Gulbekian, via Lobo Antunes) no Exterior, bem como as traduções e pesquisas nas universidades nos EUA — eu era um sucesso unânime e irretocável tão grande, mas tão grande que em 1986 resolvi me demitir da Fiesp.

| do livro DesMemórias, capítulo 67 — lançamento em 2019. |

Márcia Denser é escritora e jornalista. Formou-se em comunicação e artes pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e tem pós-graduação em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Estreou na literatura com a coletânea de contos Tango Fantasma, que escreveu aos 23 anos de idade. Como jornalista, trabalhou para as revistas Nova, Interview e Vogue e para o jornal Folha de S. Paulo. Organizou as antologias de contos eróticos femininos Muito Prazer (1982) e O Prazer é Todo Meu (1984). Publicou também O Animal dos Motéis (contos, 1981), Exercícios para o Pecado (contos, 1984), Diana Caçadora (contos, 1986), Caim — Sagrados Laços Frouxos (romance, 2006), entre outros.