três poetas por Paula Vaz de Almeida: Alice Vieira, André Nogueira, Gabriela Farrabrás

Por Paula Vaz de Almeida

Outro dia uma jovem ensaísta muito talentosa e assertiva me disse: “eu curto no Facebook uma página chamada ‘a poesia tem que morrer’”. Eu, que levo muito a sério esse negócio de poesia, tive que alertar: o Stálin achava igual e tratou ele mesmo de fazer morrer a poesia na União Soviética (em plena terra de Púchkin). Foi visível que toquei seu coração trotskista, por isso ela se explicou muito bem. E talvez até esteja certa: “as pessoas escrevem como se fosse prosa, quebram aleatoriamente as frases e chamam de verso”. De fato, tem essa tendência e há também uma vulgarização. Mas será que a melhor arma contra a vulgarização seria a rejeição? Acho que não. Por isso à tão odiada pergunta enfrentada nesses bares de mesas na calçada: “você gosta de poesia, jovem?”, tenho sempre respondido: “sim, muito, e obrigada pelo jovem”. É possível que o nosso tempo esteja querendo nos dizer algo com esse mar de poetas que nos aparece, jovens ou nem tanto; talentosos ou de jeito nenhum. Nós não podemos ser intolerantes: é preciso escutar. Daí a ideia de apresentar à Gueto, revista que sabe ouvir e acolhe poesia, esses três poetas, jovens e talentosos, muito diferentes entre si. Eles têm muito a nos dizer. A seleção que apresento é um convite.

A Alice Vieira é refinada. As imagens, os sons, as referências, as quebras, tudo tão bem elaborado que coloca em dúvida os 24 anos da poeta. “Tenho 150 anos” — ela me disse. Faz sentido. Às vezes parece de verdade que se perdeu no milênio errado. Mas pode ser também porque, como poeta, a menina já nasceu pronta. Talvez por isso consiga ressignificar referências muito eruditas usando o meme da internet. Os versos de enfant terrible enredam e embaraçam; e quando você menos espera é que vem o xeque-mate.

Ler a poesia do André Nogueira é ir mergulhando cada vez mais fundo, mas não na água, e sim numa paisagem que só não é hostil porque podemos contar com seu escudo de poeta. Seus poemas são narrativos, plásticos, reflexivos. Vamos andando com ele, lado a lado; às vezes ele oferece seu braço e, no ritmo lento do seu passo, nos surpreende com uma observação de filósofo. Apresentei o André a um amigo, que confessou: se me dissessem que é um poeta russo, eu acreditaria. Concordei: “André Pasternak”.

Mais raro que poesia erótica escrita por mulher* é poesia libertina escrita por mulher, como as da Gabriela Farrarabrás. O trato sem recato, com o pudor de uma gata de rua, flerta com o pornô; mas sem nunca confundir seu sexo com aquele da indústria pornográfica. Seus poemas tratam da posse do corpo, do próprio e do outro, da insubmissão ao sexo burocrático, tomado aqui no seu sentido figurativo e pejorativo. Não ouse pensar que sua militância está subordinada à sua vida sexual, sua palavra é autonomia, acrescentada da arroba do Twitter.

*Não sei rara ou escondida.

lésbia, por Alice Vieira

aprende uma vez mais
e repete:_______eu sou

um menestrel
____________________errante

não um bardo
____________________da corte

ainda que eu ande pelo
vale da sombra da morte
nada temerei porque

hoje o tempo
está favorável:

o vento a chuva
o nada o choro
o poema oroboro

gota d’água: lésbia
morde fino a cauda

eu não tenho casa própria
escreve uma vez mais:

eu não sou um bardo
da corte
____________________no País de Gales

eu sou uma serpente

____________________que ama a própria raba

aprende uma vez mais
e repete: _______eu procuro

o Grande Tema aquilo
que fará da minha língua

a primeira língua a língua
Mater — fundante — mister

que os apóstolos aprendam
que as Sibilas reparem

— mas a contragosto a
língua estala e chia,

me diz um sonoro não
e eu me calo e escolho

dormir

porque não posso
escolher
____________________entre

corpo e linguagem

a viúva do jornal, por André Nogueira

Com o envelopinho pelo viaduto.

No envelopinho
uma passagem para Santa Rita do Sapucaí,
um trocado para um lanche e uma coca
e o santinho, com a prece pro anjo da guarda,
que comprei numa loja católica.

No viaduto
ela me disse: “Minha história
deu notícia no jornal.
Foi quase ontem:
cinco tiros por cem conto.
Meu marido nem chegou no hospital,
já me chutaram para a rua sem um puto”.

Com o envelopinho
pelo viaduto.

Deus te livre e guarde!
Amanhã pode ser tarde…
Hoje mesmo vou trazer essa passagem.
Tua mãezinha em Santa Rita
ainda chora de saudade
e minha Mãe, que é mãe tua,
é quem te guia na viagem.
Tu acredita? Eu te prometo
que tu vai sair da rua”.

Mas na loja católica
não achei um só livreto
em que Jesus não fosse branco
e Judas preto.
E na cidade o tempo voa,
é fila no banco,
guichê da Cometa
e com o aperto da garoa
fui direto para casa.

No outro dia eu rápido saí
para cuidar da minha causa.
Alcancei o viaduto…
A passagem pra Santa Rita do Sapucaí,
a prece e o trocado para o lanche,
no envelope estava tudo.

O velhinho do sinal
segurou na minha blusa
oferecendo-me um chiclete.
“Viúva do jornal?
Não sei, jornal só uso
pra cobrir minhas canelas.
Mas na ponte do outro lado,
vai saber tu acha ela,
tem um povo, uns colchonete…”.

Quando olhei, e vi piscando a viatura,
os dois guardas com revólver na cintura,
a pobre gente recolhendo suas tralhas,
eu à toda e sem pensar atravessei,
o busão não me pegou e foi por pouco,
“Que é isso!?”, protestei
com o coração na boca.

“Como assim, o que é isso?
É meu trabalho!”, falou o polícia.
“E tu, não trabalha?
A propósito, teu nome, tua idade
e documento”, e também disse
apontando o chão de pedra:
“Este lugar é um cartão postal da cidade,
aqui não cabe essa imundice.
Agora arreda!”

Assim tomei o meu caminho,
debaixo da chuva,
amassando em minha mão o envelopinho
e engolindo a seco minha prece.
Nunca mais vi a viúva…
Mas escuto a sua voz no viaduto
como a mim ela dissesse:
“Mamãezinha em Santa Rita me espera”.
E se me lembro da mãe minha,
que é mãe dela e mãe de toda gente pobre,
já no peito o coração me acelera,
mas a blusa ainda o cobre
e macia é sobre o leito minha queda.

Roga a Deus por tuas filhas
que se enrolam no jornal,
pois ninguém delas se apieda.
Como o pão que se partilha,
rasgo em dois o cartão postal.
Raios partam estas pontes,
caiam corpulentas pedras
e apinhem-nas aos montes
sobre os edredons dos maus.

Abril de 2017

tu me diz, por Gabriela Farrabrás

tu me diz artista
como se diz vadia
mas eu entendo como um elogio
eu entendo como entendo
a palavra vadia
e eu sorrio descarada
canto de boca
te encaro os olhos
queixo levantado
me insinuando
oferecida que sou
porque ela me disse
que pra começar
eu nem sou gente
sou inteira arte
e te devoro com olhos de poeta
te chupo com boca de poeta
te fodo com corpo de poeta
e te devoro com olhos de militante
te chupo com boca de militante
te fodo com boca de militante
porque quando tu me diz artista
não esqueça que sou militante
de esquerda
uma arte política
um corpo político

Paula Vaz de Almeida é tradutora; revisora. Pesquisa a prosa de Marina Tsvetáieva, dá aulas na Escola de Língua Russa para Bolchelindas/os e é doutora em cultura e literatura russas pela Universidade de São Paulo — USP.