vinte passos, de Alex Xavier

capa_20passosTalvez eu tenha criticado a hipocrisia da esquerda primeiro ou, antes disso, ele chamou a direita de retrógrada. Também devo ter citado a aproximação da direita com o fascismo e meu antagonista refutou, listando governos ditatoriais de esquerda. Ou seja, a gente ziguezagueava. Essas discussões no Facebook não seguem mesmo uma lógica. Funcionam de forma orgânica, sem objetivo claro. Só sei que esse sujeito e eu insistimos em discordar mesmo quando concordamos. E, no final, alguém morreu.

O post tinha a ver com futebol. É possível que um de nós tenha soltado uma piadinha misógina nos comentários e o outro, ao rebater, errou o alvo, culpando os imigrantes. Apenas desconhecidos em um debate corriqueiro. Acontece o tempo todo. Outro dia, rangi os dentes com mais quatro estranhos, por cerca de uma hora, abaixo de uma reportagem sobre cotas raciais em universidades públicas. Só paramos quando um de nós perguntou se alguém ali era, de fato, negro. Claro que não. E todos vinham do ensino privado. E daí, né? Mas, tudo bem, não levamos a conversa pra esse lado e, no fim, não houve feridos. Já aquele último embate foi longe demais.

Em algum momento, juntamos religião, super-heróis e vegetarianismo em uma mesma frase. Beleza, não foi legal envolver a mãe dele daquele modo. Ainda assim, só usei tal artifício após ter a minha masculinidade questionada. Isso não se faz, nem online. Quer dizer, nada contra gay, mas cada um na sua. Se bem que, pensando melhor, capaz de ter sido o contrário. Sim, isso mesmo, ele disse puta, eu falei veado, não necessariamente nessa ordem. Ou não. Só estou certo de o desafio ter partido dele — sim, sem dúvida, foi dele.

Retire o que disse. Retiro o caralho. Tomar no cu. Vai você. Se não pedir desculpas, enfio sua cabeça no seu próprio rabo, babaca. Tenta, imbecil, e eu arranco suas bolas pelo umbigo. Nada demais, coisas que se escreve todo dia na internet, ninguém precisa ficar melindrado. Porém, o pingue-pongue de insultos durou até eu receber um emoji: uma carinha levando um tabefe. Passei uns cinco minutos estudando aquilo sem saber como responder. Só então prestei atenção no nome dele: Dagoberto.

Que emoji de merda é esse? Minha pergunta chegou quando a mensagem dele já acumulava 32 curtidas. Na verdade, nesse meio tempo, um moleque intrometido, com fotinho do Son Goku, até comentou com um vixe, agora ficou sério, quero só ver. Sim, parecia mesmo briga de corredor na quinta série. Se não responder, passa atestado, acrescentou o fã de desenho japonês. Na pressão, enviei um soquinho. Soco vale mais que tapa, não? Esqueci aquilo e desci os olhos pelo meu feed.

Oi, já sei de tudo, vamos achar a melhor solução juntos. Advogado, Emerson mantém o tom dramático até por Whatsapp. O Dago leva muito a sério esse negócio de honra, você não devia ter comentado aquilo na minha timeline. Comentado o quê mesmo? Já não saberia dizer quando as coisas degringolaram de vez. Estou aqui tanto como seu amigo quanto como dele, não se esqueça, podemos falar com sinceridade. Sério, não precisava envolver um amigo em comum pra resolver uma pendenga virtual boba daquelas. O que me importa se esse Dago é gente boa, como Emer defendia? Nunca me encontraria com ele, então, foda-se se for o cara mais razoável do universo.

Marco, acho que você não compreende a seriedade de um duelo. Verdade, não entendia. Na verdade, eu nem sabia que tinha duelo no meio. É modo de dizer? Não, duelo mesmo, dois cavalheiros acertando as diferenças em nome de um ultrapassado código de honra. A primeira imagem que me veio foi a de Clint Eastwood, Eli Wallach e Lee Van Cleef ao som de Ennio Morricone. Explodi em kkkk. Eu não vejo graça de um amigo meu ser desafiado por outro dessa forma. Emer mandou uma carinha enfezada para evidenciar a complexidade do que estava pra ocorrer.

Do meu ponto de vista, porém, não havia motivo pra alarde. Estamos no século 21, faço todas as minhas operações financeiras usando um dedo, acendo a boca do fogão por comando de voz, assisto ao bombardeio de uma cidade no Oriente Médio ao vivo do celular de um garoto de dez anos. As pessoas ainda duelam? Não dei atenção até o Emer avisar que eu precisaria apontar dois padrinhos. Ele foi escolhido pelo Dagoberto, junto com outro colega de infância deles. Então, as partes se reuniriam via Skype pra definir os pormenores.

Você foi desafiado, então pode escolher as armas. Não tive tempo nem de me assustar com a ideia. Emer avisou que não poderia se alongar, pois entraria em uma audiência de divórcio. Durante um minuto, fechei o balanço, na cabeça, de todas as armas que já passaram pela minha mão: um estilingue, uma espingarda de chumbinho, um revólver de pressão de tiro ao alvo, uma espada de samurai, falsa. Facas de cozinha contam? Não podia ser verdade. A polícia nunca permitiria que essa selvageria fosse adiante, ainda mais em uma metrópole como São Paulo.

Claro que é ilegal, Marco, desde o século 19, mas se é aceitável socialmente, você sabe, as pessoas fazem vista grossa. Armando era jornalista, cobria política, não falava à toa. Honra tem a ver com imagem, meu amigo, como você é visto pela comunidade, real ou virtual. O que publica nas redes sociais acaba voltando de algum jeito, como likes ou, nesse caso, um desafio de vida ou morte. Em seguida, ele me pediu calma. Ninguém precisaria morrer, já que nem tinham acertado como seria a peleja.

Insisti que não queria nada daquela besteira, mas era tarde. Uma hora após a ineficaz missão diplomática de Emer, havia um email de save the date circulando por aí. Como seu padrinho, digo que voltar atrás agora mancharia sua reputação e a da sua família pra sempre. Sim, Armando se autonomeou meu padrinho. Precisava escolher um segundo homem. No meu caso, uma mulher, Ester, minha irmã mais velha, que sempre me tirava de encrencas na infância. Na adolescência também. E na vida adulta, já que me empregou como corretor na imobiliária dela quando minha startup precisou fechar logo no primeiro trimestre de existência.

Vamos enrolar um pouco, irmãozinho, enquanto não chegarem a um consenso sobre como será o duelo, ele não existe. Mas existia. No dia seguinte da discussão, criaram um evento no Facebook intitulado Dagoberto x Marco, marcado, por ironia, na Praça da Paz, no Ibirapuera, em cinco dias. Até então, umas duzentas pessoas haviam confirmado presença. Como parte ofendida, ele tem o direito de escolher quando o duelo acaba. Por exemplo, até um dos dois ficar muito ferido. Vamos contestar tudo para ver se ele se cansa e desiste.

Por que não? Pesquisei e encontrei casos de cancelamentos. No século 17, o poeta romântico inglês Mark Akenside insistiu que o duelo fosse ao alvorecer enquanto seu oponente preferia no por do sol. Sem entendimento, deixaram pra lá. Cerca de cem anos depois, o físico Richard Brocklesby, também britânico, escapou porque não concordava com o número de passos que cada um daria antes de atirar. O perigo é a enrolação não ter fim. Como os militares franceses François Fournier-Sarlovèze e Pierre Dupont de l’Étang, que, entre 1794 e 1913, enfrentaram-se umas trinta vezes. Foram até transformados em personagens de Joseph Conrad no conto “O Duelo”.

De fato, o evento precisou ser adiado por uma semana sob a alegação de incongruência de agendas. Depois, uma semana a mais porque o Climatempo previa tempestade no dia. A página, agora com mais de mil confirmados, não demorou a destacar uma enquete sobre a opção da arma. Sabre vencia pistola, pelo apelo vintage, imagino. Havia, porém, votos para estiletes de escritório, marretas, machados, ganchos, arco e flecha e até pedras. Aquele idiota do avatar de Dragon Ball votou em lâminas de barbear. Foi quando Armando deu a ideia de escolher um item improvável, um que, não importasse a habilidade dos desafiantes, permitiria que saíssem ilesos, mesmo sendo considerado um armamento.

Um duelo de bumerangues? Dagoberto só se conformou com a decisão por estar cansado de esperar. Coube aos padrinhos encontrar tal arma, o que foi resolvido em uma descontraída excursão dos quatro às lojinhas da 25 de Março. Então, ficou acertado que nós dois permaneceríamos a uma distância de vinte passos um do outro. Atiraríamos de maneira alternada por, no máximo, sete vezes. E acabava assim que a primeira gota de sangue fosse derrubada. Por tradição, o primeiro seria a parte ofendida. Tudo bem, posso me prostrar ali, duvido que me acerte uma única vez dessa distância com um bumerangue. E, como também não tinha a intenção de ferir o rival, decidi desperdiçar minhas tentativas, jogando mais errado ainda.

Menos de um por cento do público confirmado no Facebook compareceu à Praça da Paz às seis e meia da manhã daquele domingo. A grande maioria optou por assistir ao vivo, do conforto de seus lares, às transmissões dos celulares dos presentes. Reunidos no centro do gramado, Dagoberto e eu ouvimos as últimas instruções de Emer e recebemos os bumerangues de madeira idênticos. Nem lembro porque começamos essa briga, então, independente do que acontecer hoje, me desculpe se te ofendi. Estendi a mão, torcendo pra nem precisarmos passar por aquele constrangimento. Se prepara, cuzão, porque andei praticando e vou arrancar essa sua cabeça hoje. Ok, entendi, sem reconciliação.

De costas um para o outro, começamos a andar adiante conforme a contagem de Ester. De propósito ou não, minhas passadas eram mais largas do que o normal. Acerta ele, Dago Ball! Não vi de onde veio o berro, mas sabia que era o tal fã de animes. Nas últimas semanas, o chato não ficou quieto, sempre postando no evento, botando fogo, querendo sangue, o meu, claro. Segundo ele, eu seria massacrado, escoriado, despenado, esquartejado, escalpelado, empalado e outros ados que eu desconhecia, apesar de conseguir visualizar. Fora a dezena de GIFs maldosos, quase toda manhã.

Dez passos. Virei e não vi meu oponente tão distante quanto gostaria. Gelei. Ainda era perto o suficiente pra me causar um belo estrago. Quase dei um passo a mais pra trás, mas minha perna não me obedeceu. Quando quiser, Dagoberto. O estômago liberou toda a acidez de supetão, o que rasgou meu peito em brasa. A ansiedade ia me matar antes daquele maldito bumerangue. Segurei minha arma tão forte que sentia a madeira envergar. Atira logo, imbecil, acaba com isso. Confesso, não vi o arremesso. Fechei os olhos no primeiro movimento do cara. Fui despertado pelo vento e o assobio bem perto da orelha esquerda. A torcida soltou um uhhhh. Sobrevivi.

Minha vez. Eu não ia desperdiçar tentativa porra nenhuma. Chega daquela merda. Estava babando, ainda trêmulo, a respiração descompassada. Por um instante, sorri, não tenho certeza. Olhei para aquela ferramenta aborígene e me dei conta, pela primeira vez, que nem aprendi a manejá-la. Jogaria por baixo ou por cima? De lado ou na vertical? Direto no alvo ou esperando que fizesse uma curva? Vai logo com isso, seu lerdo! Moleque mala, permanecia ali de lado, nas sombras, anônimo, só provocando, alimentando o ódio coletivo, fazendo comentário escroto, atiçando o pior das pessoas. Cuida da sua vida, vai ver desenho na TV.

Atirei como em um jogo de beisebol. Não que eu soubesse fazer isso. Mas o movimento lembrou o de um jogador de filme de beisebol. Fiquei de lado, dei um impulso e emendei com meio giro de cintura. E, no final, quando o bumerangue deixou minha mão direita, na diagonal, minha perna esquerda estava estendida lá atrás, pra cima, equilibrando o resto do meu corpo. Tamanha destreza fez o instrumento voar baixo, rente à grama. Depois começou a ganhar altura, um efeito bonito de se ver. Podia jurar que acertaria Dagoberto bem nos olhos. Este se protegia como em uma cobrança de falta no futebol, na barreira, com as mãos no saco. Ainda deu uma abaixadinha de susto quando aquelas hélices passaram a centímetros da sua testa e se evaporou.

Perdi minha chance e era o alvo mais uma vez. Emer ainda corria até Dagoberto com o bumerangue dele e eu só me via como um homem morto. Nunca na vida contei com a sorte duas vezes seguidas. Por que fui escolher aquela arma estúpida? Sabe-se lá onde o meu foi parar. Subiu, eu vi, mais pro lado direito. Perdi de vista. Esperava que não tivesse acabado no meio do lago. Ou melhor, se a arma se perdesse acabava o duelo? Esperançoso, abri os olhos. Todos corriam, inclusive meu adversário e nossos padrinhos. Alguma comoção rara no meio da plateia. Por instinto, corri também na mesma direção. As pessoas se agrupavam em torno de um corpo estendido. Um jovem gordinho com uma camiseta do Goku. A cabeça sangrando muito na nuca. Ao lado dele, um bumerangue. Meu bumerangue.

Chamava-se Sérgio Luís e tinha 26 anos. Trabalhava com design de videogames. Morava com a avó e ela reclamava que ele não saía da frente do computador. Hospitalizado por duas semanas. Ao acordar, não se lembrava de nada muito recente, nem duelo, muito menos bumerangue. Quase um mês após receber alta, teve convulsões no chuveiro. Morreu se estrebuchando.

| conto do livro O Teatro da Rotina (Ed. Patuá, 2018). |

Alex Xavier nasceu em São Paulo, em 1975. Jornalista e crítico de cinema, passou por diversas redações até se refugiar na ficção. Foi aluno do Curso Livre de Preparação de Escritores (Clipe), da Casa das Rosas, participou das coletâneas Não Pretendia Criar Discórdia (Giostri, 2017) e Eros Ex-Machina (@link, 2018), produz zines como membro do coletivo Discórdia e tem textos publicados em revistas literárias como Gueto, Subversa, Vacatussa e Escriva. Recebeu Menção Honrosa no Concurso de Contos Paulo Leminski de 2017 pelo conto “Tortura do Método”. Seu primeiro livro individual, O Teatro da Rotina (Ed. Patuá, 2018), será lançado em São Paulo em 30 de agosto, a partir das 19h, na Patuscada (R. Luís Murat, 40).