Granulações (Editora Reformatório, 2018) é o primeiro romance de Anna Monteiro. Narrado alternando as vozes de seus protagonistas, conta a história de Pedro e Nina, um casal em crise depois de viver uma grande paixão. A intimidade, contudo, revela, pela visão de cada um, traços do outro capazes de complicar uma relação. E aquele amor simples, certeiro e apaixonado, torna-se tão complexo que aos poucos caminha rumo a uma impossibilidade. Aqui, destacamos dois trechos, um na voz de Pedro e outro na de Nina do momento do encontro deles.
Pedro
A galeria ficava numa bucólica ladeira um pouco acima do shopping. Se na década de vinte o bairro era cenário de corridas de carro, nos tempos atuais as várias escolas, consultórios médicos, clínicas, shoppings e a universidade faziam com que o trânsito não ultrapassasse os trinta quilômetros por hora, quase a mesma velocidade das baratinhas do começo do século passado, ou da minha bicicleta. O túnel acústico, que liga a zona sul a São Conrado, completa o panorama desolador daquele pedaço da cidade. A rua Jardim Botânico estava tão engarrafada que eu mal conseguia pedalar, carros e ônibus trancavam o espaço onde se podia circular e engoli muito gás carbônico. Mas cheguei à Gávea, subi a Marquês de São Vicente, muita bebida e poucos exercícios ao longo da vida tornaram o percurso equivalente a um tour de France e, lá em cima, entrei na rua da galeria, à direita. Deixei a bicicleta num poste em frente à casa antiga reformada, que abrigava a minha exposição. Estava suado e com a camisa grudada no corpo, o cabelo que havia cortado na véspera colava na testa. Precisei de um uísque para recuperar o fôlego, segui direto para o banheiro, lavei o rosto e tentei me recompor. A curadora estava nervosa com meu atraso, era daquelas mulheres formais, achou que eu não iria, me ligou mil vezes, meu celular tem um problema crônico de sinal, expliquei, e depois de muitos salamaleques e desculpas, ela me apresentou para alguns clientes.
Minhas fotos tinham sido ampliadas, trabalhadas de forma a realçar as granulações em tons diversos entre o branco e o cinza mais escuro e estavam penduradas nas paredes de pé direito alto, com luz indireta. Cheguei a sentir orgulho da minha obra.
Nina
Ele me convidou para jantar. Caminhamos até uma praça e Pedro me levou a um bistrô, que logo se tornaria um dos nossos cantos favoritos. Pediu mais um uísque, eu alternei entre vinho branco e água com gás. Dividimos peixe, camarões, salada. Ele me contou das suas viagens pelo país fotografando aldeias indígenas, quilombolas, meninas prostituídas, a tal população invisível, rios, praias, florestas, animais. Eu escutei mais que falei.
Pedro conhecia cinema, de Antonioni a Tarantino, gostava de tudo, menos dos pretensiosos. E quem gosta dos pretensiosos? Era fã de rock, de Springsteen, meu deus, já viu Springsteen cantando Staying Alive?, devorava livros, era amigo de gente que eu admirava. Tinha acabado de adotar dois filhotes de daschunds, eu adoro aquela raça de corpo comprido e patas curtas, chamados Dupont e Dupond. Sim, ele amava Hergé e disse que escolheu a profissão para ser igual ao Tintim. Trabalhava no jornal para ter um salário fixo, porque a rotina é sofrível, gosto mesmo é das pautas inusitadas, de sair por aí vendo o que acontece. Eu entendi, claro que sim, nada como fotografar o invisível, era natural. Um sorriso no rosto. E o queixo quadrado. Era solteiro.
Aceitei o convite para conhecer o apartamento dele e outras fotografias suas, sabendo ler nas entrelinhas.
Pegamos um táxi. Pedro disse o endereço ao motorista, me abraçou e me deu um beijo. Eu correspondi. Senti sua mão alisar minhas costas, descer até o cóccix e talvez fosse mais além se o carro não tivesse chegado ao destino tão rápido. Um prédio baixo no Horto, bege de janelas verdes. Não conhecia o bairro ainda, achei lindo o casario, a rua de paralelepípedo e o Jardim Botânico ali ao lado fazendo de conta que era um simples quintal das casas. O prédio não tinha porteiro. No elevador, uns outros carinhos. Ao entrar em casa, Dupont e Dupond pularam e uivaram de alegria por ver o líder da matilha, Dupond com d mais sensível, se virou de barriga para cima, e Pedro se deitou no chão para que eles festejassem sua chegada. Os cachorros eram lindos, pretos com patas e focinhos marrons, Dupont com t um pouco mais arredio que o irmão gêmeo.
Uma bagunça aquela sala, com o sofá roído, almofadas destruídas, jornais espalhados, louça em cima da mesa, roupas atiradas em cima de cadeiras. Logo, os bichinhos pegaram brinquedos e jogaram aos meus pés para que eu atirasse para eles. Gostaram de você, só brincam com quem têm afinidade, são muito seletivos esses cachorros, me explicou.
Anna Monteiro é carioca, jornalista, formada pela Escola de Comunicação da UFRJ, com especialização em produção de TV & Cinema pela Escola Superior de Propaganda e Marketing — ESPM. Participou da coletânea de contos 14 novos autores brasileiros, organizado por Adriana Lisboa. Granulações (Editora Reformatório, 2018) é seu romance de estreia.