“Mas na primeira foi sem”, ele diz com um pé já fora da cama, evitando me olhar enquanto recolhe a bermuda no chão em busca do pacote de camisinhas. “Cê não sentiu?”
“Não”, respondo sem pensar, sem saber se a voz sai baixinha, “Não…”, ou se é o grito alucinado que ouço internamente. Eu não senti!
O que aconteceu até aqui tinha sido incrível. Enquanto andava ao seu lado, eu sentia as linhas todas que me sustentavam com delicadeza em direção à minha casa. Ainda não tínhamos beijado, mas era parte de uma espécie de acordo. Eu tinha comentado no bar que não sabia a hora certa de beijar em encontros, podia ter sido uma cantada, mas não soou assim. Ele respondeu que não existia a hora certa, o beijo era sempre uma quebra, uma irrupção, na tessitura do encontro. Eu concordei. Ainda mais num bar movimentado, ele completou. E achei que podia ser uma desculpa para não me beijar ali, mas não soou assim. É desconfortável beijar em público, concordei, mas também acho desconfortável dar o primeiro beijo só no quarto. Também não pode ser só no quarto, ele fez a ressalva, tem que ser um pouco antes. Vamo embora daqui?
Não especificou quando era o “um pouco antes”. Só me lembrei do beijo quando me agarrou na escada. Mas isso não interfere no que acontece depois. No quarto, derrubou meus travesseiros no chão antes de me jogar na cama e segurar meus braços para me ver sem defesa alguma. Não consegui conter um sorriso de excitação. Era meu jogo preferido. Mas isso ainda foi bem antes.
É melhor pular logo pra cá. Oto encaixou e veio devagar, vigiando minha reação. Não falei nada, só gemi baixinho, porque a primeira metida sempre me deixava mais tensa. Sem que eu percebesse, fechei um pouco as pernas como se, assim, pudesse controlar a velocidade com que ele ganhava espaço dentro de mim. Acho que não notou esse movimento, eu também não notei imediatamente, só depois, quando ficamos completamente encaixados e a boca dele encostou na minha. Então as pernas relaxaram e caíram para os lados. Eu não soube nessa hora.
“Eu não tinha como saber”, digo segurando a minha cabeça entre as mãos, ainda deitada, afundando na cama.
“Mas você não me viu colocar…”, ele argumenta baixinho e triste.
“Mas eu pedi…”
O pedido é a memória a qual mais me agarro. Pega a camisinha, sussurrei. Ele nem hesitou ou tentou me convencer do contrário. A ausência da ação não é um sinal. Levantou, procurou a roupa no chão do quarto e pegou uma sacola plástica. Tá vendo como eu sabia que isso ia acontecer? Eu tava confiante, se gabou. Fiquei feliz pela confiança dele. Até aquela noite, eu só sabia que o achava lindo. Voltou pra cama com a camisinha na mão e sentou de joelhos entre as minhas pernas abertas. Olhei pro teto do quarto, que exibia a cor amarelada quente do abajur, enquanto ele rasgava a embalagem, ou era o que eu presumia por um barulho de plástico meio distante. Depois do barulho, ele se chegou puxando minhas pernas. Encaixou e veio devagar, vigiando minha reação. Eu nem tinha motivos pra desconfiar.
No silêncio entre palavras que não resolvem nada, encaro o teto do quarto, que exibe a cor amarelada quente do abajur, não preciso tomar pílula do dia seguinte porque tô menstruada. E se eu pegar alguma coisa só devo saber em 20 dias, foi o tempo da última vez, lembra? E se eu passar algo pra ele?
“Eu achei que você sabia…”, ele tenta.
“Eu não quero mais falar sobre isso”, corto o assunto para evitar que mais coisas se passem pela minha cabeça. Tinha uma denúncia sobre isso no Facebook, tem uns caras que fazem isso. Por que a porra desse tesão não passa?
Procuro pela imagem do desenrolar da camisinha. Ela não existe, eu sei, mas ainda assim procuro. Estava tão relaxada que o pau dele deslizava com velocidade. Talvez fosse porque, apesar de enorme, o pau não era tão grosso, talvez eu estivesse muito molhada, talvez estivesse surpresa e feliz por ele foder daquele jeito, talvez tudo. Talvez fosse a falta do atrito da camisinha, não, eu nem tinha motivos pra pensar isso. Metia prendendo as minhas mãos acima da cabeça, me fazendo gemer alto e parar, forçando a boca a fechar pra não acordar o vizinho. Oto se divertia com meu esforço de controle e continuava. Nossos corpos ondulavam na cama, eu fazia isso involuntariamente procurando pela pele dele nos poucos segundos em que se separava de mim. De vez em quando, fazia uma pequena pausa para me encarar, como se quisesse checar o resultado de um trabalho em andamento. O que você disse mesmo sobre homens mais novos na cama? Isso já foi depois e eu continuava sem saber.
Moleque, atitude de moleque, penso com mais condescendência que raiva. Mas também pode ter a ver com o namoro que acabou recente. Eu fazia isso no meu último, quando não tinha nada na cabeça. Pode ter sido isso, né, foi isso. Ou ele não entendeu, talvez eu tenha dito “vem vem” e entendeu que era pra meter logo. Oi? Han? Ele disse qualquer uma dessas palavras?
No fundo, o que procuro é um jeito de tornar aceitável o que quero fazer mesmo depois de saber. Porque a memória ainda é boa, é de um acordo tácito.
“Vem logo pra cama”, chamo, quebrando o gelo que nem a luz quente do abajur consegue disfarçar. Reparo que a ereção não vacila enquanto ele coloca a camisinha. Isso também não faz sentido.
O que sobra e o que falta, ambos estão fora dos limites. Oto me pediu para afastar a bunda, não disse para quê, mas logo senti a pontinha de um dedo úmido na entrada do meu cu. Ele esperou o cu se contrair e relaxar antes de enfiar um pouco mais e assim foi seguindo. Fiz o que pude pra não travar a bunda, mas não foi uma tarefa fácil, nunca tinha tido um dedo no cu ao mesmo tempo que um pau daquele tamanho na minha buceta. Oto voltou a meter, deixando o dedo parado dentro de mim. Gemi com as sensações, sentindo a lubrificação aumentar. Só quando conseguiu ganhar uma velocidade boa, começou a movimentar o dedo dentro de mim, quase me fazendo desencaixar tudo com o tremor que provocou. O dedo e o pau convergiam pra me excitar no mesmo local. Tive a sensação de que a pele (membrana, músculo, sei lá) que separava os dois era fino demais, senti medo de romper, de explodir, de mijar ou de cagar ou de, definitivamente, estar indo longe demais. Deu uma estocada funda e dolorida, que me fez tremer e expulsar o dedo dele do meu cu com uma contraída involuntária. Avisei que ia deitar na cama, as pernas e os ombros reclamavam. Nem antes, quando fiquei de quatro, olhei pro pau dele. Cansei, confessei alguns minutos depois, um pouco sem graça e com receio de ele atribuir isso à minha idade. Ele não gozou, se tivesse gozado, eu teria descoberto e estaria puta de raiva. Teria sido pior, teria sido mais fácil. Ele avisou que precisava ir ao banheiro, procurou a cueca no chão, se vestiu e foi. Mas isso não prova uma intenção.
O pau estava limpo quando o chupei pela segunda vez. Achei que era uma delicadeza, um esforço para tirar o gosto da camisinha, pois talvez já esperasse que eu chupasse de novo.
Esperava? Ele não gemeu, não reagiu, foi frustrante de certa forma. A insegurança de ser mais velha e não conseguir impressioná-lo. Mas continuei. O boquete, para mim, era prazer mais físico que vontade de agradar. Depois de vencida a luta para não entrar em pânico com o pau gigante penetrando minha garganta, flertando com o sufocamento, meu corpo se transformou em líquido. Escorreu tanto pela boca, pau abaixo, quanto pela buceta. Nem nessa hora ele gemeu. Talvez só quisesse limpar o sangue. O sangue foi o que me fez descobrir.
“Não esqueceu de nada?”, pergunto quando começa a se enfiar de novo em mim, vigiando minha reação.
“Precisa?”, ele pergunta dissimulado.
“Claro, eu tô menstruada!”
“Se for só por isso…”, Oto responde com um movimento que faz a cabecinha quase entrar.
“Não”, seguro o peito dele e interrompo a penetração, “você pode ficar doente! É muito mais fácil transmitir coisas com sangue, ué”, censuro em tom professoral, ao mesmo tempo achando imaturo e meio fofo que quisesse me mostrar que não tinha nojo.
“Tá bem”, se dá por vencido. “Mas na primeira foi sem”, ele disse com um pé já fora da cama.
Não, deixei coisas demais pra trás. É preciso voltar de novo. Andei levitando por duas quadras até meu prédio. Ele ia ao meu lado, não segurava minha mão, mas escolhia nosso caminho. Andei levitando e quase sorrindo pro nada enquanto ele falava ao meu lado, acho que falava sobre a gente, sobre o que íamos fazer. Parte da minha sensação de levitação vinha das cervejas que tomamos, que nem contei, mas que não deviam ter sido muitas. As ruas retas continuavam retas. A conta tinha sido vinte reais. No Rio de Janeiro, os reais eram desvalorizados na conversão por brahmas. Ele achou que eu tava bêbada?
“Cê não sentiu?”, escuto o tom surpreso dele reverberar na minha cabeça.
Eu não senti. Não vi, fitei o teto, fechei os olhos, sem razão, mas foram apenas segundos. Nossa, que rápido, até pensei em comentar na hora em que entrou em mim, mas não quis quebrar o clima. Ele tinha reclamado que eu falava demais. As palavras ditas e não ditas se perdem na minha lembrança. O que eu disse? O que ele entendeu? Não faz sentido. Eu não tava bêbada. Como não sentiria a diferença?
A verdade é que eu não tinha razão pra desconfiar. Eu só disse besteira, pode esquecer tudo, disse num fôlego só, enlaçando-o entre as minhas pernas. Na verdade, já sabia que se tratava disso e já sabia que estava errada desde o primeiro beijo. Oto não tinha só disposição — e um pau enorme e um corpo sensacional e um queixo partido que puta que pariu — ele sabia pegar do jeito que eu gostava de ser pegada. Pareceu bom demais. Ainda parece, até agora. Não encontrei um caminho para refazer essa memória com a falta.
“Porque você tá me olhando assim?, me pergunta, achando graça, depois de gozar.
“Nada”, desconverso.
Não adianta olhar pra trás. É preciso resolver agora. Tem uma camisinha usada, com um nó no meio, no lixo do banheiro. Uma embalagem rasgada, esquecida no fundo da lixeira do quarto. Mas é o barulho do plástico rasgado que não sai da minha cabeça. Retiro os lençóis sujos de sangue e procuro por uma camisinha abandonada (escondida?) embaixo e ao redor da cama. Falta uma parte da história. Uma parte que é dele.
“Desculpa qualquer coisa”, Oto me envia por mensagem quando chega em casa.
Seane Melo é jornalista, escritora e doutoranda em Comunicação pela UFF. Coordenadora de conteúdo da iniciativa Mulheres que Escrevem, publicou o e-book Ao vivo em Goiânia: quatro contos de patroa em 2017, o zine Como Viver Sozinha em 2018 e, atualmente, trabalha em seu primeiro romance.