três narrativas do livro inédito ‘Prosa Pequena’, de Amilcar Bettega

quando chega o fim

A cidade acaba tão rápido, ele pensava, ao caminhar sem fazer ideia para onde ia, em meio àquela paisagem de poeira, pedra e um céu de nuvens empurradas pelo vento, cruzando lá em cima como se, na projeção de um filme em time-lapse, corressem sob o sol. Não deixava de ser belo todas aquelas nuvens amareladas, atravessadas pelo sol e varridas pelo vento que continuava a trazer sempre outras nuvens: quase todas com um peso e uma escuridão suficiente para fazê-lo pensar, para deixar muito forte — nele e em qualquer um que pudesse ver aquele quadro — a impressão, a certeza até, de que ali estava a iminência de uma tempestade. Destas que de repente despejam uma chuva intensa e rápida, ou então das que levantam vagas de poeira, mudam o tempo, trazem o frio, o vento, e choram uma chuva constante durante dias, transformando o céu numa massa infinita e uniformemente cinza. Mas em todo caso era uma tempestade. E uma tempestade é sempre uma tempestade.

A cidade acabava tão rápido, ele pensou, ao lembrar que começara a andar apenas porque era cedo demais para voltar para casa. Porque já havia cumprido todos os compromissos na rua mas ainda sobrava boa parte do dia livre, ele pusera-se a andar pela cidade, só pelo prazer de descobri-la, surpreendê-la em ruas oblíquas e apertadas, em parques repletos de pais brincando com seus filhos, em cafés obscuros onde poetas rabiscavam versos obscuros e bebiam conhaque, ou ainda em grandes esplanadas onde as pessoas tomavam sua bebida e namoravam e liam os jornais sob o sol. A cidade vivia tranquilamente como vive uma cidade num sonho, num filme, numa foto ou, no mínimo, como vivia uma cidade num tempo que não era mais o tempo que ele vivia agora.

Mas a cidade acabou tão rápido, ele se dera conta, ao se dar conta de que não conseguia identificar o momento em que ingressara naquela paisagem desértica — que também tinha um quê de filme ou fotografia, ou sonho, e que também tinha a sua beleza: a poeira, as pedras, os montes sem vegetação a perder-se no horizonte, o vento, as nuvens, ora mais ora menos espessas, cruzando sob o sol.

Não havia maneira de precisar o instante, de agarrar-se ao último traço de cidade, um poste de iluminação, uma fachada, uma esquina, uma ponte, nada, absolutamente nada servia de apoio àquele salto, àquele passo que o tirara da cidade para levá-lo até ali, por onde agora ele caminhava: a paisagem desértica e desolada. Era como se tivesse cruzado uma parede invisível, ou uma idade, era como se tivesse entrado ou saído de uma bolha.

Ele olhou para o céu e as nuvens continuavam a correr, ora mais ora menos espessas, empurradas pelo vento. O vento!, ele se disse, e talvez aí tenha imaginado que poderia tentar buscar um som, um último sinal sonoro da cidade. Mas ao mesmo tempo percebeu que de toda aquela paisagem desértica, pedras, poeira, montes sem vegetação, e o vento e as nuvens cruzando o céu, de tudo aquilo emanava um colossal silêncio. Percebeu então que o silêncio era indissociável da paisagem. Mais: era o seu suporte, seu elemento essencial. A paisagem se construía e se deixava ver por meio do silêncio.

E por fim nada mais lhe veio aos sentidos além da evidência de que a cidade acabava tão rápido, tão abruptamente a cidade desaparecia em meio ao silêncio.

o silêncio

Por uma espécie de abulia inata, ele foi renegando a palavra. Entregava-a aos outros em generosas porções de silêncio, nas quais eles, os outros, serviam-se com avidez e um instinto de sobrevivência que, para ele, estava próximo do comportamento dos animais.

Secretamente regozijava-se ao vê-los, os outros, embrutecidos e rasteiros, tão distantes do destino nobre que desde o início já sentia desenhado para ele. Mas não desconfiava que o regozijo, que — num esforço sincero para anular qualquer sentimento de superioridade — ele repudiava, podia ser uma forma de defesa e que na base de tudo estava a sua incapacidade para exercer a palavra, para se fazer ouvir. Ou melhor, para expressar o que queria que fosse ouvido.

Não, não era uma incapacidade, ele pensou, já tarde demais.

Mas mesmo que já fosse tarde ele continuou a pensar e convenceu-se de que uma sucessão de ausências concorrera para produzir aquele caráter particular que agora lhe pesava tanto. Ausência de coragem, de vitalidade, de vontade, de alegria, e também de uma dose de malícia para perceber que desde o início tudo já estava em jogo, que não podia haver nem haverá nunca idílio sem preço, e que este preço quase sempre está além do que se pode pagar.

Há quem faça da palavra uma arma; outros, um escudo. Com o silêncio é a mesma coisa, ele descobriu, descobrindo ao mesmo tempo um instinto de sobrevivência latente que até então ignorava.

Apaixonou-se por todas as formas de silêncio, e explorou até com certo talento as manifestações do nada, do vazio, do branco, da ausência, da suspensão, da latência, do sono, da falta de pensamento, da alienação, da inércia, do individualismo, da distração, da errância, da brisa, da passividade, da contemplação, da neve, da melancolia, da desistência, da incerteza, da esterilidade, do cansaço, da lentidão, da inapetência, do entorpecimento, da preguiça, da tristeza, da indecisão, do afastamento, da invisibilidade, da inexistência.

E claro, existia a forma suprema do silêncio, talvez a única verdadeira, que o atraía tanto quanto lhe causava medo, como tudo aliás que se ia apresentando a ele naquele caminho que se recusava a aceitar como escolha sua.

E entendeu que até então tudo fora preparação para o silêncio absoluto. Já desprezava verdadeiramente a opinião alheia, estava ao mesmo tempo acima e abaixo dos outros e de suas palavras.

Palavras vazias!, chegou a pensar.

Mas uma palavra, mesmo desprovida de sentido, não implicaria já uma renúncia ao vazio, uma negação do silêncio? Pela primeira vez entendeu que eles, os outros, fugiam também, que eram tão covardes quanto ele próprio. Ou melhor, que a coragem, se existia, estava do seu lado, porque era ele que havia chegado mais próximo do verdadeiro silêncio, do silêncio total.

Mas a radicalidade desse silêncio maior trouxe-lhe um peso, uma consistência material que o surpreendeu, não pela significação concreta desse sentimento que experimentava pela primeira vez, mas pela reação que provocara: finalmente ele descobrira a pulsão.

Já tarde demais, ocorreu-lhe num relance de pensamento, que foi logo posto de lado, rechaçado até com raiva e energia, pois estava ocupado demais em debater-se contra aquilo que agora o cercava e que o asfixiava, que reduzia o espaço para seus movimentos que, em contrapartida, eram cada vez mais instintivos e isentos de cálculo, como os de um animal enjaulado, ou ferido, ou simplesmente doente, velho e à beira da morte.

posteridade

Terra e céu, o deserto entrava nos olhos como uma branda cegueira.

Paisagem amarela, no máximo o marrom desbotado das raízes estorricadas e quebradiças: serpentes fósseis de um tempo incerto.

Tempo antes dos tempos. Parecia que o mundo insistia ali, num lamento mineral. Nas rochas, na areia, em cada partícula de pó que o vento levantava, alguma coisa ainda se acumulava, transformando-as.

Também ele se sentiu mais pedra, e num instante percebeu o que tinha de fazer.

Procurou o lugar mais plano e deitou-se no chão, braços abertos, corpo em cruz, sentindo em toda superfície das costas e na parte anterior das pernas e dos braços, o contato com a terra.

E deixou-se ficar.

Paisagem amarela, nuvens, noite, vento, paisagem amarela: silêncio.

Uma obra se faz no tempo.

(Quando muito depois alguém por ali passou, não conseguiu deixar de admirar a simetria do desenho, perfeito e petrificado, para sempre. Ali tinha parado alguma coisa.

Sob a paisagem amarela, um pouco esmaecida, escuro, paisagem amarela.)

Amilcar Bettega é autor de O voo da trapezista (Prêmio Açorianos 1995), Deixe o quarto como está (Prêmio Açorianos 2003 e menção honrosa Casa de las Américas 2003), Os lados do círculo (Prêmio Portugal Telecom 2005) e Barreira (finalista Prêmio São Paulo 2014). Seus livros e contos estão publicados em Portugal, Espanha, Itália, França, EUA, Suécia, Bulgária e Luxemburgo. Tradutor e professor, atualmente ensina Escrita Criativa na PUCRS.