cinco poemas de Tággidi Mar

I.
O medo é tolo
Dizem-nos sábias
Vozes ancestrais
E no entanto temos medo

O carro pode enguiçar
A meia-calça rasga-se com facilidade
E lá se vai toda a elegância
O pen-drive perdeu-se
O celular foi furtado — e estava sem seguro

A previsão era de chuva
E estou de sandálias em vez de botas
Hoje é quarta e o trabalho era pra terça
E se o professor não aceita?
Pode ser que me demitam

Deus castiga — quebrei minha promessa
Ela talvez tenha me traído com o ex
São amigos, foram jantar só os dois
Os clientes estrangeiros chegam hoje
E ainda não terminei o ppt

E se o passaporte não ficar pronto a tempo?
E se o time perder a final — de novo?
E se precisarmos cortar despesas?
E se precisarmos mudar os planos?
E se precisarmos de ajuda?

O medo é tolice
Dizem-nos ancestrais
Vozes
Sábias jamais puderam imaginar
Tantos medos

II.
Minha pedra de iniciação chama-se ninguém
Olho vazado no umbigo do sonho
Buraco negro engolindo o verbo

Das bocas famintas do mundo
Ninguém grita
Cala o desejo do desejo
Do um, do outro, do espelho

Ninguém carrega o fardo do dia
Nem alvo, nem seta
Ninguém há à espera

Enquanto todo o mundo se espanta
Entre excesso e falta
Lâmina afiada ou cega
Ninguém é o nirvana, a respiração certa
Metrônomo de todas as eras

Pedra fundamental cravada no escolho da alma
Pedra de iniciação, ninguém, a minha

III.
São dezenas centenas milhares milhões de cadáveres
Bilhões trilhões! — alguém grita
São incontáveis — alguém pondera
Tantos quantos os grãos de areia — um poeta
Esses são os vivos — a razão objeta
Este ano, o número de mortos de todas as eras ultrapassou o dos vivos — ei-lo, o cientista
O número de vivos de todas as eras?
A incompreensão faz os demais se remexerem na cadeira

Como suportar o peso de tantos corpos mortos? — um sussurro
Nem Letes… — um suspiro
Nem o Amazonas… — um patriota
Hoje mais um… — pranto
Provavelmente, como ontem, dado que nada mudou, outros milhares — por cima dos óculos
Contabilizamos também os animais não humanos, as plantas, outras formas da vida?
A incompreensão faz os demais se remexerem na cadeira

IV.
Dias em que sinto sei estou indo ao abatedouro
Todos

V.
Sinto-me frágil como uma criança uma planta um bichano
Um feto um recém-nascido um pobre um adolescente
Sinto-me frágil como naquele dia em que me disseram que eu era feia
Eu concordei

Sinto-me frágil como se inocente diante do júri
Me tivessem condenado à máxima pena
Como se diante de mãe e pai me declarassem
Incapaz

Frágil como um verme uma borboleta
Um raio de sol no inverno

Não há quem me afague os cabelos.

Tággidi Mar é roteirista, escritora, preparadora de textos e professora de Literatura. Tocantinense de origem, morou em Goiânia, Campinas e Dublin. Reside em São Paulo, capital, desde 2008. É bacharel em Letras pela Unicamp e pós-graduada em Filosofia pelo Mackenzie. Autora dos blogs Subvertidas (2011/2013) e Chistes e Poesia (2007/2014). Em 2017, foi premiada com a bolsa ProAC de criação literária pelo projeto Queixote e Pança em: As Histórias que nos Perseguem, romance infantojuvenil a ser lançado no segundo semestre, pela Editora Hedra.