teresa cristina pisa o valongo, de Micheliny Verunschk

É possível sentir o tumulto deste lugar. Não o tumulto de agora, digo do tumulto de antes, que não se traduz nos estilhaços, nos fragmentos de louça, no trapo de pano da costa, nos amuletos perdidos, ifás, pedaços de âmbar. É possível sentir o tumulto desse cais, desse ancoradouro onde a Imperatriz manca e feia desembarcou, mas antes dela, milhares.

É evidente a desordem que atravessa os séculos, os pretos nus em procissão para o mercado, o tilintar dos ferros, o canto lamurioso de quem se sabe morto.

Não se atravessa a Calunga sem morrer, alguém sussurra em meio às buzinas do trânsito parado na Avenida Venezuela.

O comércio de gente na Rua Direita fede. O cemitério dos pretos novos fede, vinte a trinta mil homens, mulheres e crianças mortos, e tudo fede.

Insumo perdido, diz uma voz, supostamente de um traficante.

É possível sentir a inquietação por baixo do chão, em torno das casas, nas frestas dos tijolos, dos monumentos. A salva festiva a recebe, cinco segundos entre um tiro e outro.

Cinco segundos.

Teco teleco teco, pepinos não são bonecos. É a saudação dos canhões.

Fogo! Um!

Todo navio é um tumbeiro.

Aqui era o Valongo, sinhá!

As vozes se misturam, e seu alvoroço.

Não, ela não é como se esperava que fosse: dois centímetros mais alta, três dedos mais magra, o cabelo um tom mais claro, os olhos mais límpidos.

Eu sou a Imperatriz, ela diz para si mesma, como se isso concedesse alguma segurança, mas a ela só falta exigir-se que exiba os dentes.

Não vai mostrar os dentes, Sinhá. Sinhá é branca. Ponha-se no seu lugar.

Aqui era o Valongo, sinhá! Nós morreu tudo aqui e eu valia mais que uma casa.

Uma mulher ao mar, o que seria? Um acidente, uma sereia?

Uma mulher negra ao mar, o que seria? Prejuízo?

Ela não sabe, nem vai saber. Ela é a Imperatriz Silenciosa, aquela que enxuga os olhos e prossegue. Hoje não é dia de morrer, mas um coração que se parte em dois é um cadáver aos cacos.

E os instrumentos dos arqueólogos não sabem precisar o tremor de carne que a terra sente. Que a terra ainda sente.
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Nota: O Cais do Valongo foi construído para receber as pessoas negras que vinham escravizadas da África para o Brasil. Isso lá pelos idos de 1700 e tantos. Nenhuma outra nação do mundo recebeu tantas pessoas escravizadas. O Marquês de Lavradio, que era intendente na época, ou algo que o valha, proibiu que as pessoas negras fossem comercializadas no centro do Rio de Janeiro, porque vinham doentes, porque morriam aos montes depois de desembarcar, porque a gente de bem não suportava ver a verdade de suas carnes expostas. Então o Valongo virou aquilo, um complexo onde se desembarcavam as peças, eram assim que eram chamadas as pessoas, onde se isolavam os doentes, onde eram enterrados em uma vala a que chamavam de cemitério, e onde se vendiam os que escapavam da travessia da Calunga, o Atlântico, o lugar místico da morte para tantos povos de lá, do continente negro.

Quando o Imperador Dom Pedro Segundo, um século à frente, resolveu acreditar no retrato pintado à óleo, o photoshop da época, que fizeram de Teresa Cristina de Bourbon e quando resolveu soterrar o Valongo para transformá-lo no Cais da Imperatriz, onde a princesa desembarcaria, a mesma, casada por procuração, só que outra, em tudo diversa da imagem que lhe fora vendida, o que ele queria? O que ele imaginava? E ela, aos 21 anos, leitora talvez de folhetins e contos de fadas, mandada buscar de fragata e duas corvetas, como Cinderela em sua carruagem de abóbora, vivia em que mundo? Imaginava que o rapazinho que lhe seria infiel anos mais tarde com a babá de sua filha, iria olhá-la como o quê? Uma peça?

Há lugares no mundo em que as lágrimas não cessam. E os instrumentos dos arqueólogos não sabem precisar o tremor de carne que a terra sente. Que a terra ainda sente, esse tremor que chega do mar.

| conto do livro inédito Desmoronamentos, a ser publicado em 2018 pela Editora Nós. |

Micheliny Verunschk é autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010) e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Finalista, em 2004, do prêmio Portugal Telecom com o livro Geografia Íntima do Deserto. Publicou em 2014 seu primeiro romance, Nossa Teresa — vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, com patrocínio do Programa Petrobras Cultural), vencedor do Prêmio São Paulo de 2015; Aqui, no coração do inferno (Editora Patuá, 2016) e O peso do coração de um homem (Editora Patuá, 2017). É doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Prepara, entre outros projetos literários, sua poesia reunida.