I
O mundo tinha acabado de acontecer. Era tudo ainda tão novo que nem sequer havia anoitecido. O mundo era todo um único clarão. As horas passavam, mas o dia era sempre o mesmo, como se todas as horas fossem uma única hora, repetindo-se insistentes, no céu e na extremidade do céu. Até que o céu começou a desvanecer, e a extremidade do céu foi se tornando cor de fogo, cor de mato, cor de mar escuro, e o céu foi ficando parecido com a terra. Parecido com um tamanduá. Primeiro apenas a extremidade, depois o céu inteiro da cor de terra da cor de um tamanduá. No início um tamanduá vermelho, um tamanduá dourado, depois um brilho mais escuro e mais escuro e ainda mais escuro até que até mesmo o céu deixou de ser um tamanduá, e em seu lugar as estrelas, que antes eram o brilho do corpo do tamanduá, e em seu lugar a lua, que era o brilho do olho esquerdo do tamanduá, então apenas o brilho do tamanduá sem o tamanduá. E a lua não se chamava lua, e as estrelas não se chamavam estrelas, e nem mesmo a noite se chamava noite, eram coisas sem nome, como são todas as coisas que existem pela primeira vez.
E os homens ficaram ali, nessa primeira noite, junto ao brilho do corpo e do olho esquerdo de um tamanduá. E os homens tiveram muito medo, porque o medo é o segundo sentimento que acompanha as coisas sem nome, porque o primeiro sentimento é uma espécie de espanto, que é o que surge quando surgem as coisas pela primeira vez e ainda não são boas ou más. Porque no instante em que as coisas surgem, elas ainda não tiveram tempo de ser o que são, e nem elas mesmas sabem da sua natureza. Então a noite não era boa nem má nos primeiros instantes e os homens abriam estranhos sorrisos. Mas depois o tempo continuou passando e a noite continuou ali com seu olho e com seu brilho de estrelas sem nome. E os homens começaram a ficar apreensivos porque percebiam que a noite começava a procurar algo que a sustentasse. E começaram a ouvir o barulho de bichos que até então não existiam. E os homens não sabiam que tantos bichos de duas, quatro ou muitas patas poderiam existir dentro da noite.
E os homens sentiram um medo novo naquela primeira noite, e passaram todas as horas que não acabavam nunca olhando para o brilho e para o olho do tamanduá. Até que em algum momento o tamanduá adormeceu e fechou o único olho. Até que pouco a pouco o brilho do tamanduá começou a se extinguir, e o céu foi mudando de cor, e o tamanduá desapareceu por completo. Até que voltou a ser dia, como havia sido sempre, e isso os homens reconheceram, e reconheceram o sol, e o seu brilho que era muito diferente do tamanduá. E o medo dissipou-se porque agora as coisas que surgiram eram as coisas que tinham nome e os bichos que tinham nome, e eles podiam vê-las com os próprios olhos e o próprio espanto.
II
Aconteceu muito longe dali. No início não havia casas, nem ocas, nem barracos, nem choupanas, nem coisas que carregassem esses nomes, e a terra era apenas terra e mato fechado e um rio que o atravessava. Era uma terra atravessada por muitos rios que iam e vinham em direção ao norte, em direção ao sul, e faziam o barulho que costumam fazer os rios quando só há a terra e o mato e os rios. E o barulho se repete e se repete por dias e noites e dias, até incorporar-se à paisagem, até tornar-se um barulho que não existe, até tornar-se uma espécie de silêncio. Porque o silêncio é um barulho desde sempre. Porque o silêncio é música que nunca cessa. Mas de tempos em tempos o silêncio se quebrava. A música. E vinham passos e ritmos e dias e noites e dias que passavam. Depois os passos e tudo o mais ia embora, seguindo o seu caminho e tudo voltava a ser o momento anterior. O silêncio da terra e do mato e dos rios. A música. Até que um dia, em meio aos passos e ritmos que atravessavam, alguém parou por alguns instantes e disse, surpreso, ou apenas uma forma de encanto, olhe, uma árvore, ou um rio ou um macaco ou um tamanduá. Alguém disse olhe e todos ficaram mudos, a música que se instaurava, e quem falou ficou ali em suspenso esperando resposta, enquanto todos olhavam a árvore ou o rio ou o macaco. Só depois de um longo tempo, talvez dias e noites e dias, alguém também parou e repetiu é mesmo, uma árvore, ou um rio ou um macaco. Feito eco, feito uma segunda voz, ou uma espécie de resposta. E foi quando algo aconteceu, ou acabou de acontecer. Ficaram todos ali imóveis, surpresos com o que haviam visto, a árvore, o rio ou o macaco, como se olhassem para aquilo pela primeira vez, e abriram um sorriso estranho, porque a árvore ou o rio ou o macaco haviam ficado ali também, imóveis, como se eles mesmos descobrissem alguma coisa. E quando a noite chegou os homens construíram ali um leito para poder continuar olhando para a árvore ou o rio ou o macaco, e apontando e repetindo, olhe, uma árvore ou um rio ou um macaco, feito ritmo, feito música. E a noite surgiu com seu olho de tamanduá e pareceu-lhes menos assustadora. Pela primeira vez, menos assustadora. E dormiram e sonharam sonhos ao mesmo tempo estranhos e parecidos, como se sonhassem todos um mesmo sonho, como se cantassem todos a mesma música. Como se sorrissem. E quando amanheceu, alguém mais disse, olhe, uma árvore, ou um rio, ou um macaco, e continuaram naquela estranha surpresa, como se olhe não fosse um imperativo e sim uma pergunta. E ficaram ali, esperando, e repetindo, e esperando. Até que anoiteceu novamente. E novamente o tamanduá e o olho de tamanduá, e novamente tiveram sonhos estranhos e parecidos. E assim passaram-se muitas noites, e as coisas começaram a se transformar, como se o corpo e o nome das coisas tivesse se tornado mais compacto, mais lento e mais pesado. E como se a música de repente fosse outra, e o silêncio fosse outro. E eles decidiram então construir um teto que os separasse das aves noturnas e das estrelas, que também haviam se tornado mais lentas e mais pesadas e outras. Então o tempo passou, e o tempo continuou, e descobriram que o teto os separava da noite, mas também do dia e da chuva e das copas das árvores, e criava ali uma estranha acústica. E ficaram ali, em volta do leito e do teto e das folhas que espalharam debaixo do teto, sempre lentos e pesados e sempre outros, pensando que amanhã, amanhã sim, partiriam.
III
Primeiro tudo nasceu. Nasceram as estrelas e os planetas e os rios e o mar e os macacos e os tamanduás. E as coisas continuaram nascendo e nascendo e nascendo e povoando o mundo que ainda era muito grande e não acabava nunca. E por muito tempo as coisas continuaram nascendo e povoando e nunca acabando, até que um dia ou uma noite ou um dia, a primeira coisa acabou. E a ela se seguiram outras coisas e bichos, bichos de quatro patas, e bichos de duas patas, e até mesmo bichos sem patas, e até que um dia, um homem, bicho de duas patas, soltou um grito, que não era grito de macaco nem pássaro, era grito de coisa acabando, de homem acabando, e como eles não sabiam o que era um homem acabando, não sabiam que era um grito, nem tinham nome para chamar o grito que vinha de um bicho de duas patas como eles, como tantos outros como eles. Um homem acabando. E pela primeira vez eles viram o que era um homem que acabava e não mais nascia nem povoava o mundo, o mundo que nunca acabava. Pela primeira vez eles ouviram o grito, que era um grito assustador e insistente por longo tempo insistindo, um longo tempo que nunca acabava de passar para o homem que gritava, para os homens que ouviam, e para o próprio grito, que por longo tempo insistiu, e insistiu, até tornar-se ritmo, até tornar-se música. Até que aos poucos foi se apagando, diminuindo, diminuindo, até transformar-se num gemido, até transformar-se num gemido longo e cansado, até desaparecer. E eles viram pela primeira vez a primeira pessoa que deixava de ser uma pessoa. Viram o momento em que se deixava de ser uma pessoa e não sabiam que nome dar àquele corpo que restava e que não era nada, apenas um corpo de duas patas que não se mexia mais nem emitia sons, nem gemidos, nem ao menos um susto, nem ao menos a inconstância da música. E fizeram então um círculo em volta do homem que deixava de ser uma pessoa, enquanto do lado de fora do círculo, as crianças brincavam com os macacos, que também tinham duas patas e continuavam existindo e se mexendo e gritando. E os homens e crianças e macacos ficaram ali, do lado de fora do círculo, por muitos dias e noites, ao lado do homem dentro do círculo, por muitos dias e noites, e os homens cantavam e contavam histórias e as crianças brincavam com os macacos e o homem dentro do círculo não fazia nada. E o tempo passou, e as crianças cresceram, e passaram elas também a fazer companhia ao homem, dentro e fora do círculo, e a cantar e a contar histórias. Dentro do círculo onde não se acordava. Fora do círculo, de onde se olhava com espanto e fascínio para dentro do círculo. E enquanto isso o homem dentro do círculo que era cada vez menos uma pessoa, sua carne comida por outros bichos de duas e quatro e sem pata alguma, e seu rosto comido por outros bichos era o rosto de alguém que não poderia nunca ter tido um rosto. Até que um dia, alguém se aproximou e impaciente e com frio e com medo, jogou sobre o rosto do homem um punhado de terra, porque o rosto de um homem que havia deixado de ser uma pessoa era um rosto em silêncio. A terra que o separava dos dias e das noites e dos dias, feito um teto, feito casa, e desfez-se o círculo e cobriu-se o homem inteiro de terra para que finalmente eles pudessem ir embora. E assim, desfez-se o círculo e todos foram embora. Enquanto que embaixo da terra, no lugar dos olhos, havia agora duas órbitas, e no lugar da boca, uma cavidade, e de onde surgira o brilho e a música, agora apenas órbitas, cavidades, e os bichos que se aninhavam dentro delas. Até que tudo se tornasse um único corpo e um único bicho.
Carola Saavedra é autora dos romances Toda terça (Companhia das Letras, 2007), Flores azuis (Companhia das Letras, 2008; eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti), Paisagem com dromedário (Companhia das Letras, 2010, Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor, finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti), O inventário das coisas ausentes (2014) e Com armas sonolentas (2018). Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os vinte melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta.