para Marielle Franco (p. 85)
Vivemos numa democracia, todo mundo sabe, onde aviões só caem por acidente ou vontade divina, de repente, em momento certo, matando uns inimigos. Numa democracia em que lamentamos, verdadeiramente, vereadoras assassinadas, que se opõem às intervenções necessárias, já explicadas no jornal de domingo. A democracia nossa, se sabe, é própria do estado de direito, em que o esquerdo se cala porque deus padre não fala com estado laico, baderna, burburinho. Na democracia, manda quem pode, obedece quem tem furico. Nela somos iguais, filhos e pais, mas mamãe tem os seus preferidos. Se você não se esforçou direitinho e não foi bom menino, tiramos seus mimos, sua bolsa família, te deixamos nu, no exílio, diante da matilha do colégio de elite. Botamos fogo para que você se exercite, no martírio da livre concorrência, em que paciência e investimento são as maiores virtudes. O país anda cheio, e mesmo assim democrático, faremos um pacto, e talvez você não entre na primeira lista. Nesta nova fase, em que trocamos pato por sapo, privilegiamos turistas, vamos testar novos gases e oferecer novos ares, a professores, putas e ativistas. É o nascimento de mitos, é o ocaso da guerra, nesta terra, faremos lindos campos de concentração a venezuelanos bolivarianos chavistas, indecentes artistas, universitários confusos e demais ignaros. É a democracia.
a canção do exílio (p. 88)
Minha terra tem palmeiras onde mija o jucá. As leis que alguma vez havia não funcionam mais por lá. Minha terra tem pães de açúcar para turista fotografar, pretas bonitas para comer, bater, matar. Minha terra tem mordomos, castas, clãs e clubes de tiro, e toda noite, segunda a domingo, brinca-se de polícia e ladrão. Minha terra tem palmeiras e quase já tem militar. Não permita zeus que eu sofra nas masmorras da febem, do depê ou do jecrim. Numa terra assim de grande, tanta natureza, tão pouca história, por que falta a memória para perguntar quem dá os tiros? Minha terra tem o coco, tem o oco, tem as bundas e os festejos, minha terra não tem pretos, só moreninhos, mulatinhas, tudo orgulho da comunidade. E para os machos de verdade, vaselina para os cuzinhos infantis. Minha terra não tem livros, mas tem círios, não tem leitores, mas senhores — de terno nem sempre bem cortado — que carregam bíblias mas não se comovem. Minha terra tem milico, tem o mito, tem michel e tem pezão. Minha terra tem tortura, atentados à cultura e até crime estatal. Constituição já não precisa, camelúcia é que autoriza, de acordo com a convicção. Minha terra sim tem dono, tem o ônus de tortura, desmando e escravidão. Ao cismar sozinho à noite, me coço inteiro a perguntar: para que tanta palmeira, tanta amazônia, tanta besteira, se tudo se acaba em jucá?
agora (p. 90)
E agora que já queimamos a bruxa e já prendemos o anticristo. E agora que fechamos as exposições de arte que tem bunda e que tem pinto. E agora que acabamos com as bolsas de pesquisa que não viram tecnologia. E agora que fechamos os ministérios mais inúteis e cabides de emprego. E agora que o exército está no morro e limpa as ruas com a polícia. E agora que se protege a escola de história, de filosofia e outras doutrinas. E agora que os direitos humanos têm seus dias contados, e só nós, direitos, os teremos assegurados. E que um grupo de juízes, promotores, tementes a deus e mui convictos zelam por nós. E agora mesmo que as leis do trabalho já são flexíveis e o empresário pode barganhar. E agora que só a meritocracia de famílias abastadas tende a triunfar. E agora que os sindicatos, sem impostos obrigatórios, hão de perecer sem pão. E agora que há mais ordem, mais justiça e mais família. E agora que os processos que interessam bem rápido hão de andar. E agora que o país se moderniza e o comunismo não tem espaço na vida nacional. E agora que as notícias são só boas e que avançamos como nunca. E agora que os aviões já andam mais limpos, e os aeroportos mais arejados. E agora que é para nós e somente para nós este país. E agora?
| do livro O Pau do Brasil (Editora Urutau, 2018). |
Wilson Alves-Bezerra é poeta mas, para ganhar a vida, também atua como tradutor, crítico literário e professor de literatura É autor dos seguintes ensaios: Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga (Humanitas/FAPESP, 2008), Da clínica do desejo a sua escrita (Mercado de Letras/FAPESP, 2012) e Páginas latino-americanas — resenhas literárias (2009-2015) (EDUFSCar / Oficina Raquel, 2016); e das seguintes obras literárias: Histórias zoófilas e outras atrocidades (contos, EDUFSCar / Oitava Rima, 2013), Vertigens (poemas em prosa, Iluminuras, 2015, que recebeu o Prêmio Jabuti 2016). Em Portugal, publicou a antologia de poemas Exílio aos olhos, exílio às línguas (Oca, 2017). Traduziu autores latino-americanos como Horacio Quiroga (Contos da Selva, Cartas de um caçador, Contos de amor de loucura e de morte, todos pela Iluminuras) e Luis Gusmán (Pele e Osso, Os Outros, Hotel Éden, ambos pela Iluminuras). Sua tradução de Pele e Osso, de Luis Gusmán, foi finalista do Prêmio Jabuti 2010, na categoria Melhor tradução literária espanhol-português. Como resenhista, atualmente colabora com O Estado de S. Paulo, O Globo e A União (Brasil) e El Universal (México). É doutor em literatura comparada pela UERJ e mestre em literatura hispano-americana pela USP, onde também se graduou. É professor de Departamento de Letras da UFSCar, onde atua na graduação e no mestrado. Foi coordenador de cultura da UFSCar, de 2013 a 2016.
Festa Literária Internacional de Paraty (Flip)
Wilson Alves-Bezerra participará da mesa Paralelos entre o Golpe de 1964 e o de 2016: O papel da arte na resistência, sexta-feira, dia 27, às 16h, com Rodrigo Novaes de Almeida, Rosângela Vieira Rocha e Sylvia Soares. Local: Casa do Desejo, Paraty-RJ.
O livro O Pau do Brasil (Editora Urutau, 2018) será lançado na Flip sábado, dia 28, na Casa do Desejo, às 17h. Wilson Alves-Bezerra também integra a coletânea Lula Livre, Lula Livro, organizada por Ademir Assunção e Marcelino Freire, com lançamento no mesmo dia, às 20h30, na Casa Paratodxs.