“Silêncio. Ponho o ouvido à escuta e ouço sempre o trabalho persistente do caruncho que rói há séculos na madeira e nas almas.” (Raul Brandão Humus)
A casa dos Goldstein: uma entre tantas naquela rua, a única com a aura de sombras; espectro da melancolia. Inexoravelmente, sobressai a debilidade diante do que é heterogêneo, portanto, denominaram: Assombrada. Ela destacava-se das outras pelo aspecto de decadência, as cores se transformaram em tons desbotados, as paredes da varanda descamadas pela umidade, caíam em lascas pelo chão. A varanda, coadjuvante de musgos e parasitas, foi invadida pelas plantas que se emaranhavam numa densa teia de galhos e folhagens, sem que fosse possível distingui-las umas das outras espécies. Em dias de chuva, as goteiras, que escapolem do teto, caem dentro de baldes sem alças ao redor do capacho com a inscrição inútil e quase ilegível: “Bem-vindo. Família Goldstein”. Dentro, no interior dos cômodos, o hálito do medo escapava e pairava no ar, sob a tutela da escuridão que se instalava antes dos anoiteceres. Ali, eles sentiam-se protegidos da boca escancarada que é o mundo do lado de fora.
Aquela geração chegou durante a Segunda Guerra Mundial, envergonhada pela atuação do parente distante quando foi soldado do exército de Hitler. Matou a criança indefesa como se matasse a uma galinha — repetia incansavelmente o patriarca — o velho Goldstein. Envenenou nossa ética. Não suportaram tamanha vergonha, então o grão de café sobrevoou o mapa-múndi e caiu indeciso nos limites entre o Brasil e a Argentina, o velho optou por respeitar a sorte: morariam na América do Sul, em território brasileiro. Instalaram-se em algumas cidades brasileiras em razão do cargo executivo do velho Goldstein numa multinacional de mineração. Então, seu único filho conheceu uma prima vinda da Alemanha; casaram-se em poucos meses, sem interregno de noivado. Ganharam o terreno como presente de casamento, onde seria erguida a casa “assombrada”. Participaram da construção e de cada detalhe, os Goldstein trabalharam pesadas horas, dias seguidos, economizaram tostões para a realização do sonho de cimento e tijolos. Havia histórias a contar a partir de cada centímetro construído. Não contrataram nenhuma mão de obra externa, trabalho árduo, lento e íntimo. Depois da casa dos Goldstein pronta, receberam seus filhos Ludwig e Benjamin. Bem-vindos ao mundo, garotos! Tinham necessidade de preservar o sangue e os valores da família, desde que o velho Goldstein faleceu de enfarte fulminante — o que abalou muito a confiança do Goldstein filho, caminhar sem o velho pai seria penoso. Eram como as plantas da varanda, um bloco homogêneo. Bastavam-se. O mundo lá fora não os seduzia, ao contrário, sentiam-se inseguros como os animais em extinção. Falavam, repetidamente, através de códigos secretos, sobre o parente alemão que servira ao comando do exército nazista, as barbáries de que os homens são capazes, do destino que o grão de café reservou para eles. Atentos às notícias políticas, econômicas, culturais. Tudo era importante e premonitório. Vozes ecoavam. Eram notícias reveladoras do mundo invasor e bélico. Múltiplas ameaças proliferavam em suas mentes, o refúgio, a pequena paz limitava-se à proteção daquelas paredes. A casa dos Goldstein, uma muralha que os blindava contra os perigos da guerra, pois sempre haverá confrontos, guerrilhas, sempre haverá perigo. Maldito nazista — a voz (frágil e baixa) do velho patriarca zunia no ouvido dos Goldstein. Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado. As pessoas eram perigosas. Havia o medo. E havia a necessidade da preservação da família alienígena. Excêntricos. Loucos. Jamais abriam totalmente as janelas, nem as pesadas cortinas de linho. Olhos acesos na escuridão. Vaga-lumes humanos. Luzes somente eram acesas diante de extrema necessidade. Como no dia em que o fecho de ouro do colar de pérolas da sra. Goldstein, inexplicavelmente, enroscou-se no zíper do vestido e as cinquenta e seis pérolas, que há séculos pertenciam à família, libertas, espalharam-se pela sala. Foram dias de busca, pois uma delas encaixou-se dentro do velho guarda-chuva hibernado no canto do sofá e outra se aninhou na trinca de um dos tacos carcomidos pelos cupins. Aquilo foi até divertido. A iluminação usual era composta pelos abajures e candelabros espalhados pelos cômodos. Na sala e nos quartos, o desbotado papel de parede, fixado após o nascimento do segundo filho, ainda servindo de decoração, sem nenhum grande rasgo, apenas o mofo dos anos alojava-se discretamente entre os desenhos dos ramos das flores, sutilmente enfraquecidos. Aquilo que se envergava ao tempo e ao uso, permanecia sem reparos; registros fechados, ralos entupidos, as lâmpadas, que se apagavam, normalmente não eram substituídas. Conservaram o que foi possível. O cesto de lixo — inútil utensílio, os cômodos e prateleiras a cada ano mais invadidos por bibelôs e miudezas. Desatentos à faxina, as pilhas de cadernos, de livros, jornais do tempo da guerra, cédulas e moedas fora de circulação impediam que o espanador ou a vassoura fizessem seus trabalhos com eficiência. Colecionadores de inutilidades e do tempo, sem disposição para cederem, viviam aprisionados aos objetos, tentavam, desesperadamente, interceptar a existência num conteúdo tátil, conservando suas almas alentadas pelo acúmulo de ninharias. Um tormento ceder, qualquer oferenda tinha uma função de preservação dos Goldstein. O armário da cozinha abarrotado de tacinhas de sorvetes, muitas abrigando teias de aranhas. Se o país vivia o império da ditadura, o melhor era não se envolverem com os militares e nem com os comunistas. Se o país vivia a efervescência das Diretas Já, melhor não se abrigarem debaixo da enorme bandeira. Se o país vivia a expectativa do impeachment do presidente, melhor travar com durepoxi os ralos do banheiro para evitar que baratas surgissem a rondar livremente. Intensificaram as medidas de segurança quando viram, pela velha televisão, corpos dilacerados de crianças vítimas de ataques israelenses. Complicada equação que culmina em mortos. Como compreender o primo assassino ou o anônimo assassino? Confusos e permanentemente aterrorizados furavam paredes para servir de observatório. Não compreendiam os estranhos seres: homens. Como entender? Tinham que se proteger contra o mal. Tudo aquilo trazia à tona o tiro certeiro que o parente disparou na cabeça da criança judia. O parente ressurgia em figura militar, policiais e suas balas perdidas, cérebros a céu aberto. Qualquer homem de qualquer raça pode empunhar uma espada ou disparar uma arma. Era isso: um vírus que se espalhou um dia. Não podiam limpar-se da vergonha, do asco que se estendia para outras mãos, esmagam inimigos ao redor do mundo. Viva o petróleo. Viva a indústria bélica. Viva a religião. Vivas, ouviam pelo alto-falante do rádio de Benjamin. Homem inimigo do homem; desde quando, meu Deus? — agonizava a mamãe Goldstein. O primo propagou-se como um vírus, desde a Antiguidade? Estavam confusos. Clones copulavam. Podiam travar as janelas e as torneiras e planejar estratégias contra o assustador mundo externo. Banho para quê? As torneiras vedadas, apenas a da pia da cozinha funcionava. Foco nos perseguidores. Malditos, todos. Assassinos de uma figa. Ratos imundos, todos. Papai Goldstein sussurrava com sua boca murcha e cansada de protestar: estamos submetidos à maldição que começou com aquele desgraçado, matou a criança indefesa, agora nós, os inocentes Goldstein, teremos que pagar o alto preço pelo seu erro: a reclusão. Escória, vergonha: repetia os xingamentos herdados. O coro ganhou repertório ilustre. Homens não melhoram e matam-se como percevejos. Sombras de antigas guerras. Havia dias em que o homem, com seus cabelos grisalhos e ensebados, com os olhos insanos, disparava ao léu seu confuso discurso, os outros três personagens reproduziam falas uns dos outros. Confusos; xingavam qualquer etnia. Às vezes, falavam ao mesmo tempo, numa confusão babélica, desesperados, lutando contra estranhos seres. O mau cheiro de seus corpos contrastava com o frescor que escapava da dama-da-noite. A vizinhança indignada, dizia: precisam ser internados. A mamãe Goldstein passava seus dias entre o olho mágico e as gretas das persianas. Vermes. Como ficariam tranquilos, se, depois da tecnologia, eram monitorados pelos computadores dos Estados Unidos? Inimigos espionam por satélites, a inteligência era mais uma tirania contra eles. Alguns dias, acordavam em alta noite e desciam do segundo andar para enfrentar, se necessário, o perigoso mundo do lado de fora. Cada um na sua trincheira, pronto para a guerra. Passavam o resto da madrugada com o olho grudado no buraco da porta, aprender com os vietnamitas, dizia o filho mais velho que era expert em estudar estratégias; cavavam túneis no chão da cozinha e da despensa. Haveria modos de fuga diante do ataque. E aquela hora chegou: viaturas estacionadas do lado de fora, o megafone pedia a rendição dos Goldstein.
Fantasmas da Rua Azevedo.
Homens do resgate, da vigilância sanitária, Guarda Municipal, vizinhos nas calçadas, cachorros latindo, as avencas na varanda há muito mortas de inanição e noutras latitudes guerras sem fim.
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Eltânia André nasceu em Cataguases-MG, mora em Lisboa. Autora do livro de contos Manhãs adiadas (Dobra Editorial, SP, 2012), dos romances Para fugir dos vivos (Ed. Patuá, SP, 2015) e Diolindas (Ed. Penalux, SP, 2016, escrito em parceria com Ronaldo Cagiano), e do livro de contos Duelos (Ed. Patuá, SP, 2018).