gueto entrevista Ronaldo Cagiano

r_cagiano1. Para começar, conta um pouco sobre o livro Eles não moram mais aqui, vencedor do Prêmio Jabuti em 2016, e que sai agora em Portugal.

O livro havia sido oferecido a várias grandes editoras, entre 2012 e 2014. Se por um lado recebia de algumas editoras um NÃO por meio de respostas burocráticas e automáticas, havia também o silêncio ou a solene indiferença de outras. Ou ainda o pretexto de que conto não vende para descartar qualquer análise. Então, ofereci ao Eduardo Lacerda, da Ed. Patuá, que aceitou abraçar o projeto e publicou o livro que, para grande alegria, obteve o 3º lugar no Jabuti em 2016.

Nesse livro, reúno 16 contos escritos em diversas épocas, então, você vai encontrar contos muito recentes e outros com mais de 10 ou 15 anos, textos que saíram em blogs, revistas eletrônicas ou impressas, um ou outro em antologia, alguns premiados em concursos avulsos.

São histórias que guardam um liame entre si, porque mapeiam temas que me são caros e recorrentes, como a passagem do tempo, a morte, a insularidade do homem contemporâneo nesse mundo regido pela virtualidade, velocidade e fugacidade das relações, as crises domésticas e existenciais, enfim, situações e ocorrências que povoam o nosso inconsciente individual e coletivo.

2. Como costuma ser seu processo de criação?

Meu processo de criação não segue um modelo ou padrão específico, posso até dizer que não há uma disciplina ou esquema rígido, seja formal, conceitual ou temático, no entanto, é em meio ao caos e à fragilidade da vida diária que as histórias vão surgindo. Tudo pode ser motivo para entrar num conto ou numa poesia, desde a banalidade de um acontecimento corriqueiro até a imagem ou memória de algo ancestral, que hiberna lá no passado de minhas lembranças ou experiências pessoais ou íntimas. Uma conversa de rua, por exemplo, uma imagem, um flagrante podem surgir como insight para a construção literária. E até mesmo uma leitura de algum autor, de um texto, de uma leitura de jornal. Ao escrever, posso iniciar diretamente no computador ou esboçar anotações nalgum bloco, caderno, folha solta, caso esteja na rua e a ideia me ocorra. Não há nem roteiro nem rotina pré-estabelecidos para a minha escritura. Já ocorreu de eu levantar no meio da noite, interrompendo o sono, por uma ideia e anotar para depois retomá-la. Ou andando pela rua, viajando de ônibus, metrô, trem ou avião e, igualmente, o fato ou a ideia saltarem à minha frente. E aí, de alguma forma, registro esse sentimento para depois trabalhá-lo com mais rigor e vigor.

3. E como foi o processo de criação com Eles não moram mais aqui?

Retomando o afirmado anteriormente, esse livro é um conjunto de narrativas esparsas, escritas ao longo dos últimos anos, com textos mais antigos e outros nem tanto, que em algum momento foram publicados em veículos impressos ou eletrônicos e alguns contos premiados em concursos. De um modo geral, a temática que os percorre é análoga, tendo sempre como foco o ser e sua inesgotável usina de desencantos e desconfortos.

4. Você escreve prosa e poesia, já tem um novo projeto em mente? Pode nos contar? Costuma dar um intervalo na escrita entre um livro e outro?

Sim, embora me considere essencialmente poeta, pois iniciei, ainda na adolescência, escrevendo poesia e publicando em jornais colegiais em Cataguases, depois uma coluna de crônicas num hebdomadário local, o ingresso na ficção se deu naturalmente, na sequência de alguns livros de poesia. Foi quando já havia publicado meu quarto livro de poesia que resolvi juntar uns contos que havia escrito e nunca publicado e o inscrevi num concurso que havia anualmente promovido pela Secretaria de Cultura do Distrito Federal e o livro ganhou o 1º lugar no Prêmio Brasília de Produção Literária de 2001, num certame em que havia cerca de 60 livros concorrendo. Foi minha primeira e estimulante experiência com a prosa, daí em diante dei continuidade ao trajeto literário dedicando-me aos dois gêneros, porém não há uma hierarquização no que diz respeito aos projetos, pois posso escrever uma sequência de livros de poesia ou de contos, ou intercalar um gênero entre outro, isso vai surgindo na medida em que há uma demanda pessoal em progresso. Por exemplo, já escrevi ao mesmo tempo, entre um gênero e outro, uma novela juvenil em parceria (Espelho, espelho meu, com Joilson Portocalvo, em 2001); uma novela sobre experiências e desafios de dois jovens na cidade grande (Moenda de silêncios, com Whisner Fraga, 2014) e um romance (Diolindas, com minha esposa Eltânia André, 2017). Ao mesmo tempo, são obras que dialogam ou flertam entre si, pois, ao fim e ao cabo, há assuntos que se comunicam.

Atualmente, estou trabalhando na revisão de um novo livro de contos e concluí outro de poesia. Sairá também pela Editora Urutau, em breve, um livro de poemas intitulado Os rios de mim; esta edição é fruto de uma chamada para análise de originais que a editora paulista anunciou publicamente para receber trabalhos de autores residentes em Portugal, sejam nativos ou brasileiros aqui radicados, e entre dezenas de inscritos foram escolhidas sete obras.

5. O que você diria para quem está começando a escrever? Por que você começou a escrever?

O leitor precede ao escritor. Não concebo um autor que não seja potencialmente um leitor. Pode haver o talento, a facilidade ou predisposição criativa, mas só se apura no ofício ou no estilo lendo sempre. A melhor escola ou oficina literária é, a meu ver, a leitura, o contato com outras obras e autores, e não falo apenas na leitura literária, mas a leitura do mundo e da realidade que a ficção e a poesia nos permitem. O candidato a escritor não pode ter o açodamento, a ambição, a ansiedade e a urgência de publicar-se. Muitas vezes um bom escritor em gestação terá sua carreira abortada ou será estigmatizado por ter publicado um livro sem qualidade. É necessário maturar, conviver com seu trabalho, com seus temas, com suas experiências de vida principalmente, porque tudo isso será canalizado para o processo criativo em condições de maturidade e relevância. Ler, reler, tresler, não ter a angústia ou viver sob a pressão por uma estreia, pela visibilidade ou conquista de espaços. Tenho notado em muitos escritores, sejam estreantes ou colegas com um percurso já longo, a ausência do leitor. E muitos não se acanham em evidenciar essa lacuna, não percebo em muitos um histórico de leituras e, quando muito, conhecem alguma coisa do lixo literário do estrangeiro, que nos chega, imposto goela abaixo pelo sistema editorial hegemônico e mercenário, e desconhecem solenemente o que de bom se produz aqui. Lembro-me de ter lido há alguns anos uma entrevista concedida pelo escritor mineiro Roberto Drummond, na qual ele sentenciava que “Poeta ruim já nasce feito. O poeta bom se faz, trabalhando dia a dia como um operário, a disciplina de um campeão de natação e a fé de um monge.”

Na mesma direção, Graciliano Ramos, numa entrevista concedida em 1948, falando sobre o trabalho do escritor, foi taxativo: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.” Essas são duas lições que entendo salutares e imprescindíveis, que valem para qualquer escritor que queira ter responsabilidade estética como condição norteadora de sua obra. Não há milagres nem caridade que substituem esse esforço.

Complementando a resposta à sua pergunta, em adendo a um lugar-comum de que escrevo para me comunicar, para despistar a morte e tentar compreender o que me cerca e também porque nunca gostei de futebol e as únicas quatro linhas que me interessam são as da página de um livro, o verdadeiro campo de minhas disputas e combates, eu também assinalaria com o que disse Clarice Lispector e que, de certo modo, me alcança: “Sei lá por que escrevo! Que fatalidade é esta? Enquanto eu tiver perguntas, e não houver respostas, continuarei a escrever”.

Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e São Paulo e reside atualmente em Lisboa. É autor, dentre outros, de Dezembro indigesto (Contos — Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), O sol nas feridas (Poesia, Ed. Dobra, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012), Observatório do caos (Poesia, Ed. Patuá, 2016) e Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, Prêmio Jabuti 2016).

Seu conto “Eles não moram mais aqui…”, do livro homônimo, saiu na revista gueto no dia 12 de junho, você pode ler aqui: [link] E cinco de seus poemas saíram no dia 16 de julho, você pode ler aqui: [link]