o barbeiro
De suas hábeis mãos
ele interroga as faces úmidas
no bailar da lâmina
desbasta o jardim de pelos
corrige
as voçorocas da pele.
De quantas faces
é construída a sua vida?
O salão
mais que a câmara
de seu claro ofício
é templo onde reverberam
histórias da cidade
confessionário laico
de dores que não se estancam
como as feridas
que habilidosamente
ele soube drenar
no afagar da toalha
__________com seu ácido batismo do álcool.
Ele ouve a cidade
e não pode dizer nada
além dos olhos que indagam
almas perdidas em sua cadeira
trono de reis desnudos
Bigodes, costeletas, o fio resistente
no escuro das narinas
& o solene escanhoar que se repete
no pressuroso balé de
tesouras
pentes
navalhas
__________& espumas
ele emoldura tanto desassossego
artesanato de mãos
que nunca se fatigam
nem enferrujam:
máquina de vincar rostos
tão despidos de outros
encantos.
rotina
O último trem vara meus
instintos — a vida segue como um tiro.
(Tanussi Cardoso)
Do pátio da velha estação
(esqueleto desativado onde hibernam morcegos)
procuro no tempo escuro e abissal
a histriônica locomotiva da infância
penetrando a cidade como um raio.
Fera metálica atravancando a avenida
beirava o córrego como uma centopeia arengueira
recolhendo os olhares de mulheres nas janelas
adestrando o galope dos moleques
que, disputando com a máquina alucinada,
venciam a corrida contra alguma coisa que não sabiam
Aquele trem no vai e vem
com seu barulho contumaz
emerge — feito o passado latente —
dos escaninhos da noite
Animal sem metafísica
insistente como o presente
ainda impõe a melodia insolente
dos apitos
enquanto
desconheço a tirania do futuro.
maçãs ao entardecer
Aquela cesta solitária
_____feito um alguidar de silêncios
exibe as três maçãs
_____na cozinha que se despedia do sol.
Ainda a claridade baça
_____configurando a tarde indisposta
_____amadurecia o outro fruto escondido,
um coração esquartejado
pelos vermes
de miméticas angústias
Não há como devorar o passado
com a mesma sanha,
_____a mesma fome
desses animaizinhos
que nos corroem por dentro
poema em linha torta
_________Para Leonardo Garet
Ainda tenho medo
do chapéu de meu avô
(mas eu nunca tive avô)
de suas orelhas de abano
e seu silêncio antigo como o tempo
(feito o silêncio de seu filho)
Porém
a fumaça de seus cigarros de palha
continuam
_______________atravessando
a sala
o quintal
a vida
interditando meus olhos
escurecendo minhas andanças
essa fuligem eterna impregnando tudo
essa dor itinerante
por saber impossível
(todavia necessária)
a utopia
Somos inquilinos do desassossego
e nessa manhã opaca
e fria
a sisudez da paisagem
esconde tantos mistérios
A janela da velha casa
revela segredos incontidos
enquanto capta o acelerado passo de um casal
em seu footing burocrático
de todos os dias
O mundo lá fora
é vício e desordem
há urgências
palavras de ordem
__________do tempo presente
__________da tecnologia presente
__________das competições presentes
e a Ilha de Manhattan continua intacta
queremos implodi-la com as dinamites das minas de Itabira
mas há um Atlântico a nos fatigar
Em mim
permanece uma constelação
de vazios
um mapa de varizes
a vida e seus móveis e utensílios
não parecem o que são
é preciso vivê-la
com uma faca penetrando a maçã
e o olhar desconfiando da Cruz do Calvário
De tantas entranhas
o que vamos reconhecer:
sabores ou feridas?
A matemática precária
de tantos amores
abriu uma trincheira
construiu desertos
no vazio e no silêncio
das horas mortas
trouxe a sólida
imprecisão das coisas
Anfíbia e andarilha,
a alma nutre-se do que
é migalha ou espanto
ruínas
Cadáver de um prédio
corpo inconcluso
organismo em ruínas
apedrejado pela incúria pública
Contemplo o esqueleto de cimento
contrastando com a opulência da avenida feérica
com suas vísceras à mostra
como um cão faminto
sem força para rosnar
sem alma
sem nada
desossada estrutura, palavra
sem cal
nem mal
Lugar sem nome
vazio que se impõe
ovário vertical germinando indiferenças
túmulo de histórias
Apenas um espantalho inútil
na lavoura de espantos da metrópole
passam por ti os homens
não se movem
nem têm medo
Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e São Paulo e reside atualmente em Lisboa. É autor, dentre outros, de Dezembro indigesto (Contos — Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), O sol nas feridas (Poesia, Ed. Dobra, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012), Observatório do caos (Poesia, Ed. Patuá, 2016) e Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, Prêmio Jabuti 2016).