guinadas, de Marcos Vinícius Almeida

Uma amiga terminou o doutorado há mais ou menos dois anos e passou esses dois anos fazendo todo tipo de freela enquanto tentava concursos em universidades públicas. É o sonho dela. O mês passado ela foi aprovada para uma vaga de substituta numa cidade do Espírito Santo. Está muito feliz.

Mulher, negra, ela nasceu numa família de baixa renda, em que os pais não concluíram o ensino médio. Agora ela é doutora. Doutora de verdade, para além do hábito bacharelesco e aristocrático do pronome de tratamento para certas profissões. Passou sete anos, entre mestrado e doutorado, pesquisando o mesmo objeto. Tem um trabalho sério e consistente. De cientista, mesmo.

Ela partiu na última madrugada de ônibus do interior da Bahia e são mais ou menos umas dez horas de viagem até a cidade que vai trabalhar. Uma cidade com uma praia aconchegante, ela me disse.

Está muito feliz com seus fones de ouvido e olhando a paisagem escura e silenciosa que passa rapidamente na janela. Um tanto quanto ansiosa, talvez. Dessa ansiedade feliz que toma conta da gente nessas horas de guinadas na vida. Talvez esteja pensando em tudo que teve que superar pra ter essa oportunidade. Racismo, o preconceito de classe, de gênero, aquele olhar do avaliador na entrevista. Aquele comentário você não é bem o perfil que nós estamos procurando. O chiado abafado do ônibus que avança noite adentro rumo ao litoral.

Ela me escreve dizendo algumas dessas coisas. Outras imagino. Uso a intuição. Ela me diz que o ônibus teve um problema na porta. São umas quatro e meia da manhã. Parados num pequeno posto de gasolina melancólico próximo de Eunápolis. Apenas um velho Fiat Uno vinho parado do lado de fora.

Ela aproveita pra usar o banheiro e só há um banheiro. Cobram dois e cinquenta. Ela hesita. Mas como está muito apertada e ainda precisa aguardar o outro ônibus, conta as moedas e entra.

Está tudo muito quieto. A luz amarelada e o lugar frio. Um cheiro forte de água sanitária. Quando vira o pequeno corredor, há uma figura de costas, diante do espelho. Uma coisa meio absurda. Um palhaço, mais ou menos magro, as roupas puídas. Usa umas botinas duras. E está se pintando, sem pressa. Uma velha lata de talco branco e uma tinta gordurosa, vermelho vivo. O palhaço se vira, mas não sorri. Metade do rosto maquiado.

Me arranja uma moeda, diz o palhaço. É pra inteirar o café.

Um tanto abismada, ele tira a primeira nota que encontra na carteira. É uma nota de vinte. Entrega pra ele.

Acabei de receber, ela diz, como que se desculpando pela caridade.

Quando o novo ônibus chega, ela entra. O dia já vem saindo. Da janela, ela vê o palhaço. À beira da estrada, tentando carona. Ela até ergue a mão, pensando em fazer um tchau. Que absurdo, quase diz pra si mesma. O ônibus dá a partida. Que vida doida, ela diz. E sorri.

Marcos Vinícius Almeida é escritor e jornalista. Cresceu em Minas, mas vive em São Paulo. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, é autor do volume de contos Paisagem interior (Editora Penalux, 2017). Foi um dos vencedores do Prêmio Ufes de Literatura por duas vezes, nas edições de 2010 e 2015. E-mail: mvalmeida.7@gmail.com