cenas do campo, de Alberto Lins Caldas

1

● eramos tres andando no campo ●
● com nossas bengalas de carvalho ●
● polidas e envernizadas com salitre ●
● sob os chapeus cabelos bem cortados ●
● sapatos de couro de gado engraxado ●
● roupas de lã e meias de linho negro ●
● o campo aberto a estrada livre o vento ●

● é possivel q jamais tivessemos querido ●
● mas um de nos não sei qual tirou a faca ●
● q todos nos carregamos e num segundo ●
● cortou o pescoço do q dele ia a frente ●
● enquanto o amigo cortado se debatia ●
● como uma serpente no fogo o sangue ●
● jorrava como uma serpente voadora ●

● depois ele mesmo cortou a garganta ●
● pra dançar como serpente nas brasas ●
● deixando no ar um esporro de sangue ●
● num instante os dois ficaram imoveis ●
● com o rosto de quem não sabe a morte ●
● rosto de quem não sabe porq vivemos ●
● o certo é q os dois tavam sujos de lama ●

● bengalas caidas cada uma prum lado ●
● chapeus rolando com o vento e sujos ●
● as roupas negras tambem enlameadas ●
● colarinhos brancos vermelhos terrosos ●
● a faca agora longe dos corpos e limpa ●
● com certeza chovera essa noite diriam ●
● nenhum de nos ouvira chuva e trovoada ●

2

● na mesa de madeira de lei a cafeteira ●
● branca de branco laqueado fervendo ●
● dentro nosso delicioso cafe e rindo ●
● um dos tres puxou a faca e degolou ●
● o amigo sem q se soubesse porq sim ●
● enquanto outro degolava o segundo ●
● a mesa as cadeiras eram sangue puro ●

● encharcados de sangue queriam sim ●
● mais uma boa xicara de cafe fervendo ●
● é verdade q agora era sim impossivel ●
● não so porq eram cabeças sem corpo ●
● mas sim a cafeteira e os copos cairam ●
● não havia mais cafe nem atmosfera ●
● entre os amigos de tantas horas e anos ●

● uma cabeça ia dum lado pro outro ●
● como se dissesse não e repetisse ●
● a outra se esticava e dizia sim sim ●
● os corpos inertes como madeira ●
● a faca inda com sangue na mesa ●
● como se esperasse boas fatias de pão ●
● ou o queijo duro preferido em fatias ●

● longe o gado se inquietava e mugia ●
● tanto o gato quanto o cachorro na casa ●
● começaram a latir e miar com agonia ●
● seria possivel dizer q as nuvens pesaram ●
● negras e estranhas pelos lados da lagoa ●
● com certeza chovera essa noite diriam ●
● nenhum de nos ouvira chuva e trovoada ●

3

● nossos chapeus cinzentos cor de merda ●
● como todos nos diziamos e repetiamos ●
● quase cantado pelas vias nas bicicletas ●
● q tanto adoramos voando pelos campos ●
● ate um dos tres tirar a faca e degolar ●
● um de nos numa rapidez de animal ●
● depois outro fez a mesma coisa ●

● com um de nos q despencou logo ●
● como uma bananeira sob uma lamina ●
● os dois sem cabeça imoveis e rijos ●
● ao lado das bicicletas desmanteladas ●
● todo o conjunto como marionetes ●
● jogadas numa estrada sem sentido ●
● as bicicletas tinham mais razão ●

● um imenso boi passou entre nos ●
● olhando aquilo tudo sem se dar ●
● assim como um cachorro lambeu ●
● mais ou menos meio litro de sangue ●
● o ar tava denso e era dificil respirar ●
● como se ele tambem fosse de sangue ●
● isso prejudicaria demais as bicicletas ●

● tanto quanto a tempestade q viria sim ●
● aquela noite pra lavar tudo e enferrujar ●
● as bicicletas e tudo q era de metal sim ●
● nenhum deles se importaria com isso ●
● começou a ventar demais e com violencia ●
● com certeza chovera essa noite diriam ●
● nenhum de nos ouvira chuva e trovoada ●

4

● os olhos da tempestade eram uma laranja ●
● podre podre demais e gelada tão gelada ●
● q nem reparou nos degolados da tarde ●
● no campo seis degolados sendo preciso ●
● pelo menos tres batalhões pra ela sentir ●
● as tempestades são assim insensiveis ●
● com cadaveres principalmente degolados ●

● a agua não a agua deve saber e sentir ●
● como não sentir todo aquele sangue ●
● com certeza não chovera essa noite ●
● apenas granizo no meio da noite tocara ●
● com a carne gelada da tempestade carne ●
● gelada dos mortos todos bons amigos ●
● o granizo a tempestade não se importa ●

● como gostariam de ta na sala e tomar ●
● longe daqui um eau de esprit ou vinho ●
● rirem a vontade os bons amigos todos ●
● arrancando nacos de queijo entre goles ●
● contando historias marcando caminhos ●
● quem sabe enfim a caverna la em cima ●
● sentindo o cheiro do mato gordo e doce ●

● cajus cuidados por abelhas e formigas ●
● o choro raro das raposas o pio das aves ●
● rodelas de limão amargo depois do gole ●
● talvez tenha sido isso q me traz o sono ●
● o cheiro de limão amargo e conhaque ●
● todos nos enfim na caverna acolhedora ●
● com certeza não chovera nessa noite ●

Alberto Lins Caldas publicou os livros de contos Babel (Revan, Rio de Janeiro, 2001), gorgonas (CEP, Recife, 2008); os romances senhor krauze (Revan, Rio de Janeiro, 2009) e Veneza (Penalux, Guaratinguetá, 2016), e os livros de poemas No Interior da Serpente (Pindorama, Recife, 1987), minos (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2011), de corpo presente (Íbis Libris, Rio de Janeiro, 2013), 4×3 — Trílogo in Traduções (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2014), com Tavinho Paes e João José de Melo Franco, a perversa migração das baleias azuis (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2015) e a pequena metafísica dos babuinos de gibraltar (Ibis Libris, Rio de Janeiro, 2016). Blog [link].