louca
não ousávamos
chamar a mamãe de louca
nem depois da morte do pai
quando ela foi até o cemitério
e voltou com os ossos do falecido
e ainda com as mãos cheias de terra
deixou a sacola plástica
em cima da mesa e nos disse
olhando profundo:
hoje vocês vão almoçar
com o pai de vocês
não ousávamos
chamar a mamãe de louca
nem quando ela trocou
todos os espelhos da casa
por grandes plantas verdes
em terra preta em vasos pretos
e disse: quem quiser olhar pra si
q encare o verde das folhas
não ousávamos
chamar a mamãe de louca
nem quando ela jogou fora
a televisão e o rádio
e disse q fazia aquilo
pra nós proteger
ou quando proibiu todos nós
de comermos fora de casa
pq a comida q eles vendem lá fora
é tão perigosa quanto o rádio
e essa merda de televisão
não ousávamos
chamar a mamãe de louca
nem mesmo quando ela revelou
que o João de Barro que vivia
em uma araucária antiga
nos fundos da nossa casa
era nosso bisavó Jorge
nem quando ela sentava na janela
e assistia os demais pássaros
voando livres e cantarolava baixinho:
há tempo para todo homem
ser pássaro
há sempre o tempo
do pássaro
há o tempo…
não ousávamos
chamar a mamãe de louca
talvez pq de alguma forma
bem lá no fundo
todos nós soubéssemos
que ela era entre todos ali
a mais sã
júlio
depois q o Júlio morreu
todos passaram a olhar para as mãos
antes de dormir & procurar por movimentos
involuntários encarando os dedos e todas
as linhas da vida
depois q o Júlio morreu
alguns até pediam prum familiar
amarra por favor
meus pulsos antes d’eu dormir
amarra por favor
depois q o Júlio morreu
todos os espelhos foram cobertos
com panos pretos e as pessoas tomavam
cuidado para não encarar seus próprios
reflexos e as crianças até reclamavam
mãe é difícil lavar o rosto sem a gente ver a gente
e as mães sérias diziam
eu não quero perder você
depois q o Júlio morreu
todo mundo ficou com aquela sensação
de engolimento vindo dum lugar escuro
do âmago tipo coração na boca do estômago
como se alguma coisa estivesse
mastigando devagar
um pedacinho do corpo da gente
depois q o Júlio morreu
todo mundo se reunia depois da janta
e dava as mãos e ficava quietinho
só pra ver se ouvia o barulho
da morte no vento nas folhas
nas paredes das casas
depois q o Júlio morreu
as crianças sempre dormem
com seus pais e todos juntos
à luz de velas debaixo da coberta
nós contamos antes de sonhar com
o cadáver de Júlio o número de abismos
rindo da gente entre o osso e a carne
superlotação
aqui a situação é precária
a gente não tâmo podendo se defecá
não tâmo podendo uriná
tâmo dormindo um por cima do outro
tem gente doente gente baleada
tem quem levou tiro na cara
tem quem levo tiro na perna
tem ferida inflamada e pereba
tem muita doença
e as doença tão correndo na gente
numa coceira que vai dum pro outro
e pro outro e pro outro feito rato
uma coceira que a unha não mata
coceira que dá vontade de arrancá a pele
e ficá em carne viva só pra num coça mais
aqui a situação é precária
tem merda pra tudo quanto é lado
e tá todo mundo com sede e quase não tem água
de vez em quando eles ligam o cano
mas é por pouco tempo e nem dá pra todo mundo
faz tempo que ninguém toma banho
faz tempo que ninguém come direito
faz tempo que a situação aqui tá assim
e tá todo mundo suando
as parede tão suando
os mosquito tão suando
as barata tão suando
o calor aqui é infernal
aqui a situação é precária
nóis somô noventa e oito
e nóis era cento e dois
só que ontem eles vieram
e tiraram quatro corpo daqui
o cheiro tava forte demais
e a gente ia morrê mais rápido por causa do cheiro
mas eles não querem que a gente morra rápido
só que eu acho que a gente já tá apodrecendo
eles levaram os corpô mas a morte ainda tá aqui
e se você respirar fundo você até enxerga ela
tá enxergando?
a morte disfarçada de mijo
a morte disfarçada de bosta
a morte disfarçada de suor
a morte disfarçada de ar
entrando na gente e matando pouquinho em pouquinho
porque a morte tá do lado deles
ó respira você consegue enxergá?
aqui a situação é precária
tem gente aqui com pena vencida
quatro cinco mês que já devia tá solto
mas num tá e é como se a gente nunca mais
fosse ser livre mesmo do lado de fora
tem um cidadão aqui que roubô um pacote
de bolacha e uma latinha de coca
e o cara tá preso há seis meses
e ninguém tomo uma providência
tem gente presa pegando um ano
como se já tivesse sido sentenciado
pra fica um ano preso você tem
que ter uma sentença nas costas
tem preso que tá aqui há um ano e meio
e até o certo momento nunca nem foi num fórum
não veio nenhum papel não tá sendo feito nada
pra resolver a situação
aqui a situação é precária
a gente é noventa e oito
e eles comentam entres eles
“como é que pode ter noventa e oito
num lugar que só suporta trinta?”
e o outro ri e diz
“se tá cabendo noventa e oito
é porque cabe noventa e oito”
eu cometi um crime
cometi e assumi ele
cometi e quero pagar por ele
mas eu te pergunto
cê não acha que é crime também
toda essa gente aqui
sendo tratada assim
igual lixo?
Felipe Teodoro (1993, Ponta Grossa-PR) tem textos publicados em diversas antologias nacionais, participou das revistas literárias Gueto, Literatura & Fechadura, Ruído Manifesto e Revista Vacatussa. Seu primeiro livro Onde Os Pássaros Cantam Doentes (Editora Fractal) tem lançamento previsto para o segundo semestre de 2018. Contato: felipets9@hotmail.com.