dois poemas de Leila Guenther

bola de cristal

Quando recebemos nossa vida de volta
vimos tudo o que perderíamos em troca
pela tela de uma televisão:

________________________os seres que amamos
________________________o teto sobre a cabeça
________________________a confiança que depositávamos no chão

Partes de nós que se desgrudavam como a pele de um leproso
sob a forma confusa de imagens que se sucediam:

________________________uma enchente no Rio
________________________um terremoto na Sumatra
________________________o Haiti destruído
________________________um pai no banco dos réus
________________________a filha morta
________________________uma roleta russa
________________________a escravidão da novela da tarde
________________________ (nunca fomos livres, nunca seremos)

Quando teremos morrido pela primeira vez?

Na UTI o inferno era uma velha TV do futuro que só desligavam à noite
quando ninguém dormia e Lázaro mandava lembranças

jonas & jó

Ouvi o som de seus cabelos arrancados,
ouvi seus gritos mudos dentro da água em que se afundava,
ouvi como perdia os membros, um a um,
decepados rente à base de um corpo quase morto.

Prendo o fôlego para partilhar o ar que respiro
com quem naufraga pela terceira vez
no mesmo ponto do mar, longe da praia,
e já não tem braços para se agarrar
às mãos que lhe são estendidas.

Jó era uma mulher mastigada
na barriga de uma baleia,
que um dia
— em meio à espera e ao ruído de ossos quebrados —
há de ressuscitar.

Leila Guenther é autora de Viagem a um deserto interior, selecionado no Programa Petrobras Cultural e finalista do Prêmio Jabuti; O voo noturno das galinhas, traduzido para o espanhol e editado em Portugal; e Este lado para cima. Participou das antologias Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa; Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte; 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras; Cusco, espejo de cosmografías: antología de relato iberoamericano; Outras ruminações: 75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; 70 Poemas para Adorno; Grenzenlos; 69: Antología de microrrelatos eróticos; Blasfêmeas: mulheres de palavras; Transpassar: poética do movimento pelas ruas de São Paulo. Realizou edições comentadas de obras da literatura brasileira e portuguesa. Para os palcos de Robert Wilson, adaptou a peça A dama do mar (edição bilíngue), de Susan Sontag, baseada em Ibsen, e traduziu A velha, adaptação de Darryl Pinckney para uma novela de Daniil Kharms.